Por Vladimir Safatle
O atual ministro da Defesa, Nelson Jobim, presta um desserviço ao
país com suas declarações sobre a Comissão da Verdade. Ao afirmar que a
comissão deveria apurar também as ações de grupos de luta armada contra a
ditadura, o ministro reforça a ideia de que a violência de um Estado
ditatorial contra a população e a violência de cidadãos contra tal
Estado são equivalentes.
Tal colocação vem coroar uma semana na qual ouvimos o ministro de
Segurança Institucional dizer que não é motivo de vergonha o
desaparecimento de presos políticos.
Afirmações dessa natureza baseiam-se na chamada “teoria dos dois
demônios”: malabarismo retórico de quem acredita que “excessos” foram
cometidos dos dois lados e que, por isso, melhor seria deixar o passado
no passado.
Tal sofisma foi rechaçado por todos os países. Não por outra razão, o
Brasil é mundialmente citado como exemplo negativo no que diz respeito
ao dever de memória e ao trato dos direitos humanos.
Um dos fundamentos da democracia ocidental consiste no direito de
resistência. Em última instância, ele afirma que toda ação contra um
Estado ilegal é uma ação legal.
O filósofo liberal John Locke lembrava que assassinar o tirano não
era crime, pois homens livres não se submetem a grupos que tomam o poder
pela força e impõem um regime de exceção e medo.
Foi baseado nesse conceito que, por exemplo, os resistentes franceses
não foram considerados criminosos, mesmo tendo perpetrado sabotagens e
ações violentas contra outros franceses, colaboradores do nazismo. O
problema é que há pessoas no Brasil que estão aquém até mesmo de um
conceito liberal de democracia.
Por outro lado, com suas afirmações, o ministro da Defesa esconde
tacitamente o fato de que os integrantes da luta armada envolvidos nos
chamados “crimes de sangue” já foram julgados. Eles não foram
beneficiados pela Lei da Anistia, de 1979. Por isso continuaram na
prisão mesmo após essa data, fato que o pensamento conservador nacional
faz de tudo para acobertar.
Ou seja, os únicos anistiados foram os responsáveis por terrorismo de Estado.
Por fim, vale lembrar que, contrariamente a outros países
sul-americanos, não existiam grupos de luta armada no Brasil antes da
ditadura militar. Eles foram o resultado direto do fechamento das vias
políticas de transformação.
Por isso, aos que se contentam em repetir chavões como “temos que
construir o futuro, o importante é isso” devemos lembrar que país nenhum
construiu o seu futuro sem acertar contas com os crimes do passado.
A exigência de justiça é como a razão, segundo Freud: ela pode falar baixo, mas nunca se cala.