O Historiador Carlo Ginzburg traz de volta a era do pintor Piero della Francesca a partir da maneira com que sua obra foi criada.
Por: kelli de Souza
Durante anos, o historiador italiano Carlo Ginzburg viveu com uma reprodução da pintura Flagelação de Cristo,
de Piero della Francesca, pregada na parede do quarto. Passava horas
estudando-a intensamente, sempre recordando a primeira vez que a viu em
Roma, em 1953. Essa atenta observação fez parte da primeira tentativa
de desvendar os mistérios do quadro, sobre o qual a única certeza que
se tem é a autoria. Pouco se sabe sobre Piero, o mestre italiano da
pintura renascentista, nascido nos arredores de Arezzo, região da
Toscana, por volta de 1415 e 1420. O mistério que atraiu Ginzburg,
desde os 14 anos, recebeu uma ousada reinterpretação no livro Investigando Piero, publicado pela primeira vez em 1981, e que acaba de receber edição especial da editora Cosac Naify.
Ginzburg é um dos mais importantes expoentes da micro-história, gênero apresentado nos anos 1970 e 1980 por historiadores italianos ligados à revista Quaderni Storici,que parte de uma observação geográfica e sociológica reduzida – quase microscópica – para estabelecer um olhar mais amplo da história, com aspectos que poderiam não ser percebidos em escalas macroanalíticas. O método situa o sujeito e suas relações no processo histórico, sem deixar de considerar outros fatores que se inter-relacionam e compõem a trama histórica.
Um bom exemplo pode ser visto em O queijo e os vermes (1976), livro que tornou Ginzburg mundialmente conhecido e que traz o cotidiano de Domenico Scandella (conhecido como Menocchio), um moleiro que foi condenado à morte pela inquisição romana no final do século 16. Por meio do personagem, o historiador repassa a história dos milhares de julgamentos da Santa Inquisição. Em entrevista à Revista da Cultura, Ginzburg atribui o sucesso do livro ao seu herói. “Ele era um indivíduo extraordinário, mas há algo em sua vida e morte que ressoa imediatamente com as experiências e objetivos de leitores de diferentes países: o desafio à autoridade (religiosa ou política), que aproxima o livro das experiências individuais”, conta. O mesmo ocorre em outras obras do autor, como Os andarilhos do bem (1966) e História noturna (esgotado) (1989), entre outros.
Em Investigando Piero, Ginzburg esmiúça detalhes da vida do pintor e busca as circunstâncias em que o artista pintou suas obras, contextualizando-as e deixando de lado as bases puramente estilísticas. O autor dialoga com o clássico Piero della Francesca, de Roberto Longhi, publicado em 1927, e aprofunda seus argumentos em torno da datação de Batismo de Cristo, Flagelação e do ciclo de Arezzo. “Procurei recuperar a complexidade de algumas pinturas de Piero a fim de obter uma melhor percepção de sua trajetória. Concentrei-me em dois pontos: os patronos (quem encomendava) e a iconografia das obras. Deliberadamente, evitei fazer comentários sobre seu estilo – não porque sou insensível a isso, pelo contrário (este foi o principal impulso por trás da pesquisa). Queria fazer uma experiência e um experimento deve ser sempre focado e seletivo”, explica.
De acordo com o historiador, a escassez de dados sobre a biografia de Piero implicou que a trajetória do artista tenha sido reconstruída com base em seu desenvolvimento estilístico. “Essa abordagem levou inevitavelmente a conclusões divergentes. Tentei testá-las utilizando uma abordagem diferente (potencialmente mais sólida).Comecei a partir dos detalhes das pinturas usando-os como pistas. Assim, procurei explorar alguns contextos históricos. Depois voltei às pinturas novamente e assim por diante.Tentei recuperar a densidade dessas imagens – algo que não se faz mais. Vivemos em um ambiente saturado de imagens (em grau impensável, por exemplo, no tempo de Piero). As imagens perderam seu valor, tal qual a desvalorização de uma moeda. Quando somos confrontados com pinturas como as de Piero, temos de aprender a olhá-las de maneira diferente, em um ritmo diferente, com uma intensidade diferente”, conclui.