Por Fábio de Castro
Agência FAPESP – Com base na historiografia tradicional, o
abolicionismo e o fim da escravidão no Brasil foram interpretados por
muito tempo como processos elitistas, nos quais o escravo aparecia como
um personagem passivo. O livro O Plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição, que acaba de ganhar sua segunda edição, revista, vem contribuindo desde 1994 para mudar essa visão.
O fim da escravidão foi resultado de uma cultura política gestada no
cotidiano do trabalho nas senzalas, de acordo com a obra, fundamentada
em pesquisa realizada a partir de múltiplas fontes por Maria Helena
Toledo de Machado, professora do Departamento de História da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São
Paulo (USP).
De acordo com Maria Helena, a tese central do livro – que teve origem
em sua pesquisa de doutorado, concluída na USP em 1991 – é que os
escravos não tiveram um papel passivo no processo que culminou com o fim
da escravidão, que não teve nada de elitista, ao contrário do que
deixava transparecer a historiografia abolicionista.
“Os escravos tiveram ampla participação no processo, em um movimento
que também envolveu trabalhadores livres pobres e imigrantes. A atuação
dos líderes abolicionistas só é compreensível como parte de um contexto
de uma cultura política que teve origem nas senzalas, com a tensão
social causada por sucessivas fugas em massa ao longo da década de
1880”, disse à Agência FAPESP.
Segundo a historiadora, o objetivo do livro era analisar a atuação
dos escravos no processo de abolição, no período entre 1880 e 1888, no
contexto paulista. Para isso, além de consultar uma bibliografia
internacional, ela realizou uma pesquisa inédita considerando acervos
judiciários e a documentação da polícia em cidades paulistas.
“Tratava-se de uma documentação massiva, com milhares de documentos
que mapeei para selecionar apenas o que se referia aos escravos. A
partir dessa seleção, valorizei os casos que relatavam revoltas, fugas
em massa, homicídios, invasões de cidades e outros movimentos de maior
impacto”, afirmou.
A pesquisadora, então, visitou diversas cidades paulistas, consultou
cartórios locais e levantou processos criminais relacionados aos eventos
que estavam listados na documentação oficial da polícia.
“Além disso, encontrei no Arquivo do Estado, pela primeira vez, o
livro de reservados da polícia – onde eram registrados os fatos que não
podiam ser divulgados para o público. Colhi os relatórios mais gerais
dos chefes da polícia, dos presidentes das províncias e dos jornais da
época”, disse Maria Helena.
No ano de 1885, por exemplo, os relatórios do chefe de polícia de
Campinas relatavam que havia sido um ano tranquilo, sem maiores
problemas a não ser pequenas ocorrências pontuais com escravos. Enquanto
isso, o livro de reservados registrava um cenário certamente mais
próximo da realidade: a cidade estava em perigo iminente com as fugas em
massa de escravos.
“Percebi que os jornais eram censurados e retratavam uma versão rósea
da realidade que a polícia de fato estava enfrentando. Acompanhei
diversos estágios da produção dos eventos. Desde os primeiros
telegramas, nos quais os fazendeiros pediam socorro ao subdelegado
depois da invasão da sede de uma fazenda por escravos armados, passando
pela notificação de cada autoridade, até chegar ao desenrolar do
conflito e à divulgação nos jornais”, disse.
Onda de pânico
A historiadora descobriu revoltas de escravos que não haviam sido
documentadas anteriormente. Uma delas, abortada, estava planejada para
ser realizada em Resende (RJ), em 1881. Os registros diziam que um homem
branco conhecido como Mesquita tinha chegado dos Estados Unidos e
estava organizando uma revolta de escravos sem precedentes.
“Ele orientava os escravos a roubar armas dos senhores, a cortar os
fios dos telégrafos e a roubar cavalos. Planejava articular uma ação
orquestrada e formar uma excursão para a corte, no Rio de Janeiro, a fim
de exigir a abolição da escravidão. Vários episódios mostravam grande
movimentação social naquela década – entre São Paulo e Rio de Janeiro –
com participação ativa dos escravos”, disse Maria Helena.
Outra revolta estudada foi organizada em 1882, em Campinas (SP), e
chegou a ser realizada, embora em dimensão menor que a planejada.
Liderada por um escravo liberto chamado Felipe Santiago, essa revolta
foi associada à organização de uma seita religiosa denominada Arásia.
“Os adeptos tinham iniciações, recebiam novos nomes e eram marcados
no corpo em ritos iniciáticos. Esses escravos haviam comprado armas e
invadiram a cidade de Campinas em uma ação muito violenta. Esse tipo de
episódio dissipa a ideia de que a abolição foi uma libertação passiva,
ou um protesto irracional e apolítico dos escravos”, contou.
O título do livro – O Plano e o pânico –, segundo Maria
Helena, remete à organização deliberada das revoltas arquitetadas por
escravos e à onda de pânico por elas espalhada entre os escravistas.
“Depois da revolta de Resende em 1881, houve vários outros episódios e
o pânico se espalhou pelo território paulista. O medo era tamanho que,
em Bananal, por exemplo, as pessoas chegaram a abandonar as fazendas e
fugir para a cidade. As polícias paulista e fluminense, despreparadas,
sem armamentos, sem treinamento, viram-se sob o risco palpável de
eventos violentos durante toda a década”, disse Maria Helena.
O Plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição
Autor: Maria Helena Toledo de Machado
Lançamento: 2011
Preço: R$ 37
Páginas: 248
Mais informações: www.edusp.com.br