Ana Eliza
Se
eu tivesse um blog, meu post de hoje teria o título “Valdenilton
Nascimento dos Santos”.
Valdeniton
é
adulto de rua. Já foi criança de rua, desde sempre, aqui na Liberdade,
onde
morei e onde ainda passo alguns fins de semana. Valdenilton tem toda a
liberdade
aqui no bairro, todos sabem quem é ele, todos o conhecem. Uns insistem
que ele rouba. Eu que pergunto e acredito na resposta, ouvi Valdenilton
dizer que tem uma
lei: não rouba. Pede ! Pede, com gentileza eu diria.
Ganhou,
sem querer, o apelido de Saddam. É preto, de dentes estragados, de cabelo black power. Tem brilho na pele e brilho no olho. Valdenilton é meu seguidor no tuitter da vida real. Sempre que me vê
me saúda, alegre, “amiga!” – acho que ele ensaiou um tia que eu desaconselhei.
Desde
pequena
eu penso sobre moradores de rua. Sempre teorizei que eles são carentes
de abraço. Nas muitas vezes que saí para o trabalho, recusei abraços de
Valdenilton,
informando a ele que eu estava “limpa”, que ia para o trabalho. Ele
pareceu
sempre compreender. Já cheirou muita cola, pra “matar o frio e esquecer a
fome”, diz ele. Hoje diz que não faz mais isto. Não sei onde Valdenilton
passa
a noite, mas sei que ele não tem casa. Conta que a mãe morreu,
“queimada” –
acho que foi isso. Vivia com um cachorro e com outros meninos
“cheiradores de
cola”, que acredito terem morrido. Valdenilton sempre me conta uma
noticia
deles, mas eu nunca sei quem são eles. Prefiro focar nele. Ele que me
inspira confiança, beleza até. Ele que me lembra, muito, o Sandro, do
onibus 174 (e da chacina da Candelaria).
Valdenilton
já
livrou minha irmã de um assalto, achando que era eu. “Libera, libera,
que é
tia”. Valdenilton já carregou muitas compras minhas. E nunca me cobrou
nada.
Sempre diz “se a senhora puder, compre isso.” Na padaria, sempre
encontro com
ele e sempre brinco de oferecer e de não oferecer algo – sou contra
facilidades
de qualquer tipo. Outro dia, me disse que gosta mais de leite que café.
Recomendei ao atendente que desse a ele um leite morno e com carinho.
Olhos arregalados, o atendente. "Mas já viu ?" O
atendente sempre quer dar de modo brusco e eu sempre lembro que eu estou
comprando o leite., que o menino merece ser bem tratado.Trocou um
sanduíche por 2 paes “sem nada dentro pra ter 2” Sempre oferece a opção
mais em conta. Outro dia
confessou: eu queria era comer pipoca. A galera não acreditou quando eu
perguntei: qual o seu sabor favorito ? Às vezes quero mimar o menino que
mora
nele.
Estava
na fila da lotérica quando ele apareceu. Todos me olharam estranhamente. Sempre
me olham assim. E sentou no chão e disse que ficaria ali pra “me proteger”.
Ofereceu pra ir na fila do idoso pagar a minha conta. Recusei, dizendo a ele
que ele não era idoso. Ele riu com gosto. Chegou um bêbado pra me pedir
dinheiro e Valdenilton se levantou e mandou o cara sair. Observei tudo. Abriu a
carteira e me mostrou a identidade. Disse que queria meu número de telefone,
mas que não era pra eu dizer ali, “pois todo mundo podia ouvir e querer
anotar”. Foi comigo até a porta de casa, viu que eu tinha sacado algum
dinheiro, em nenhum momento pediu nada e me desejou boa semana, boa viagem, me
perguntando quando eu voltaria a morar aqui.
Hoje
encontrei Valdenilton na padaria, e ele me pediu que “comprasse alguma comida
com aquele meu cartão” – ele sabe que eu tenho sodex. Disse pra ele que tinha zerado o saldo – o que foi verdade.
Ofereci comida de casa e ele seguiu comigo. Antes me abraçou, sem pedir,
informando que tava limpo – de corpo e de alma ? pensei. Foi comigo até a
escada do prédio. Sentou-se, disse que estava cansado. Ficou sorrindo,
esperando. Sorriso largo aquele. Voltei com o prato de feijão e arroz “sem
farinha”, conforme indicação dele. E trouxe salgadinhos e bolo. Ele foi logo
dizendo, menino, que veio com sobremesa. Fiquei vendo ele comer e meu coração
pensava este texto. Dei a ele o meu número e ele confirmou se podia ligar a
cobrar. “Vou ligar hoje a noite”. Sugeri que ele ligasse num dia que não
tivesse me visto, quando tivesse saudade. Se despediu pedindo, humilde, que eu
desse a ele uma camisa do Vitoria (que é meu time, inclusive), no dia do
aniversário dele – 17 de novembro. Um
grande amigo faz aniversario no dia 16. Daqui a um mês, Valdenilton fará 28
anos. De camisa vermelha e preta, será que ele prefere bolo de morango ou de
chocolate ?