Faltava esse livro no Rio Grande do Sul. Não que tudo o que está dito
na obra seja novidade, não o é por certo, sobretudo para os
historiadores. Mas esse livro de Juremir Machado da Silva, que promete
muita polêmica, é, realmente, um bom guia para aqueles que detestam o
romantismo tolo e infame dos criadores de mitos sociais. História
Regional da Infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades
brasileiras (ou como se produzem os imaginários), publicado pela
L&PM, trata da desconstrução dos mitos que sustentam o imaginário
heroico farroupilha e do próprio tradicionalismo sulista. Livro
obrigatório nas bibliotecas das escolas
e leitura profícua para os implementadores de políticas educacionais no
Estado que, muitas vezes, tratam a história do Rio Grande do Sul ou
mesmo o tradicionalismo de forma ingênua e acrítica.
São lugar comum entre os pesquisadores
profissionais os meandros da criação dos mitos regionais: a invenção do
gaúcho, as formas de legitimação das histórias míticas acerca da
identidade do sul do Brasil, do açorianismo como traço identitário, a
ode e os mitos sobre a inexistência de escravos nas regiões de
imigração, a democracia pampiana com sua horizontalidade social e assim
por diante. Autores importantes, mas ignorados pela grande mídia e pelos
promotores de políticas educacionais,
como Ruben Oliven, Tau Golin, Mário Maestri, Décio Freitas, entre
outros, já apontaram em diversas obras como a história oficialesca do
Estado tem se comportado frente a temas políticos estratégicos, como é o
caso da ancoragem da identidade sulista na Revolução Farroupilha,
etc....
Mas esse livro de Juremir carrega consigo o peso de um
autor midiático que é, também, um pesquisador profissional, um acadêmico
conhecido e cercado por polêmicas também conhecidas. Desde o começo da
leitura do livro algo importante é evidenciado. A pesquisa é ancorada em
fontes documentais precisas, não se trata de um ensaio, mas de um texto
bem escrito e lastreado pelo espírito investigativo.
O livro mostra com clareza a corrupção entre os líderes da Revolução Farroupilha, o financiamento da campanha a partir da venda
de escravos, as traições, entre muitíssimos outros exemplos. Nada de
heróis, pouco espírito republicano, nenhum homem saiu com a moral
ilibada do evento. Um evento fratricida, como também o foi a Revolução
Federalista de 1893, que nada deveria orgulhar uma sociedade. O mundo
real, efetivamente. Tudo isso que deveria ser ensinado nas escolas, mas é
subtraído por versões romantizadas e doutrinárias, produzidas por
diletantes e ideólogos e, pior, distribuídas gratuitamente nas escolas
do Estado e adotadas passivamente nos currículos. A publicação desse
livro de Juremir, no entanto, não significa que a partir de agora as
coisas serão diferentes. Penso que a indiferença e a precariedade
cultural em que vivemos não nos farão sensíveis à infâmia de nossa
História Regional. Penso que continuaremos consumindo e ensinando nas
escolas uma História anedótica dos heróis, da tradição e por aí vai, no
melhor estilo do fascio, com as louváveis exceções, claro. Ruben Oliven,
na obra A parte e o Todo, nos mostra um exemplo esclarecedor de como
as identidades e as tradições são inventadas, forjadas e até
ingenuamente legitimadas, que ilustram esse ceticismo. Trata-se de um
poema épico finlandês, intitulado Kalevala, publicado no século XIX, a
partir do qual se forjava o folclore e a identidade finlandesas. Mesmo
depois de os folcloristas, os intelectuais e, claro, o povo, saberem que
se tratava de um poema inventado recentemente e não um épico,
portanto, um engodo, preferiram acreditar na sua veracidade. Continuaram
a considerar Kalevala um lastro imemorial da identidade da Finlândia. É
isso, entre a história e o mito há uma tênue fronteira. É preciso levar
a sério a História e aprender com ela, não usá-la como figurino da
farsa.
Mozart Linhares da Silva /Historiador, professor do curso de História e PPGEDU-Unisc