Lucas Ferraz
de São Paulo.
O livro empoeirado e com sinais
visíveis de ácaro registra o negócio formalizado pelo senhor José (o sobrenome
é ilegível) num longínquo 23 de outubro: a compra da escrava crioula Benta, uma
adolescente de 14 anos. Valor: um conto e seiscentos mil réis —aproximadamente
R$ 1.750.
No mesmo tomo, há mais
registros da escravidão na cidade de São Paulo no ano de 1875: uma relação de
escravos —cerca de 300— de uma fazenda no Paraná trazidos para a cidade, cartas
de alforria e documentos que mostram até a permuta de escravos por animais.
Foto: Marlene Bergamo/Folhapress
Documentos arquivados no Primeiro Tabelião de Notas, em São Paulo.
Uma rica documentação sobre a
escravidão em São Paulo está dispersa, sem a necessária análise e preservação,
no cartório do Primeiro Tabelião de Notas, pioneiro na cidade. O material se
encontra num cofre, misturado a outros documentos como escrituras de casas e
fazendas na incipiente cidade.
Pesquisadores do período
criticam o fato de esses registros, essenciais para entender o cotidiano da
escravidão urbana, permanecerem sob o poder de tabeliães, que exercem um serviço
público, mas de caráter privado.
"Não faz o menor sentido
uma documentação tão valiosa como essa ficar num cartório. É sintomático que
São Paulo, que sempre escondeu a escravidão, mantenha esses documentos
escondidos", disse a historiadora Maria Helena P. T. Machado, professora
titular do departamento de história da USP e especialista em escravidão.
Por ser o último país do
Ocidente a abolir a escravidão, em 1888, pululam nos cartórios do país
registros como os de compra e venda de escravos e cartas de alforria.
Alguns já destinaram esse
acervo para fichamento e estudo, caso do Segundo Tabelião da capital, que
enviou para o Arquivo Público do Estado de São Paulo toda a documentação
relativa ao período que vai de 1742 a 1937.
No Primeiro Tabelião de Notas,
constam registros a partir de 1740. Todos estão no cartório, no bairro de Santa
Cecília, e podem ser consultados. Mas não há preservação adequada para
documentos tão antigos e faltam também funcionários com expertise para decifrar
textos arcaicos, de difícil compreensão.
Marlene Bergamo/Folhapress
No Terceiro Tabelião de Notas,
criado seis anos antes da abolição da escravatura, também constam, ainda que em
menor número, páginas com registros do período.
A polêmica é quanto à
obrigatoriedade de enviar os papéis aos arquivos para serem estudados e
preservados.
A Lei de Arquivos diz que a
administração da documentação cabe às instituições arquivísticas do Estado. Já
a legislação que regulamenta a atividade cartorial nada prevê sobre a
destinação desses registros históricos. É o argumento do tabelião Aldo Neves
Filho para manter o material no Primeiro Cartório.
"Os arquivos públicos não
têm condições de manter todos esses registros", diz Ubiratan Guimarães, presidente
do Colégio Notarial do Brasil.
Ele afirma que, para um
cartório doar parte do acervo a um arquivo, é necessário uma autorização
judicial.
ACESSE A FONTE: