OS BANQUEIROS DO TRÁFICO

                                                                   Torre do Tombo - A contabilidade da escravidão 
                                                                   Uma conta de compra de escravos em Luanda

Documentos antigos evidenciam papel dos grandes negociantes de Lisboa nas operações com escravos em Angola
 CARLOS FIORAVANTI | ED. 231 | MAIO 2015

Em 1740, o português Domingos Dias da Silva era um capitão de navio que transportava tecidos, aguardente, vinho e armas de fogo para Luanda, o maior porto ligado ao tráfico de escravos em Angola, então uma colônia portuguesa. Silva vendia as mercadorias, recebia parte do pagamento na forma de papéis chamados letras ou em livranças, que funcionavam como promissórias, e parte na forma de escravos. Depois de entregar os escravos no Brasil, ele trocava as letras por moedas de ouro, enchia os porões de açúcar e voltava para Lisboa, fechando uma viagem que poderia ter começado dois anos antes. Silva ganhou dinheiro suficiente para participar do leilão de contratos de escravos, promovido pelo governo português, e oferecer mais que os concorrentes. Depois de 25 anos, ele se tornara contratador, cobrando impostos em nome do rei sobre os negócios com escravos e acumulando riqueza, poder e prestígio.

Sua trajetória expõe a complexidade comercial do tráfico de escravos entre Portugal, Angola e Brasil, que o historiador Maximiliano Menz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), está reconstituindo por meio de dois conjuntos de documentos encontrados por ele na Torre do Tombo, um dos arquivos históricos de Lisboa. O primeiro conjunto, consultado pela primeira vez em 2011, são os quatro livros de contratos de exportação de escravos comprados em Luanda de 1763 a 1770. Nessa época, em média 9 mil africanos saíam por ano de Angola como escravos. Ao longo de três séculos, quase 6 milhões de africanos saíram principalmente de Angola para trabalhar nas minas de ouro e nas plantações de cana-de-açúcar do Brasil.
O segundo conjunto de documentos emergiu em outra viagem, em janeiro deste ano: são os cerca de 230 livros – quatro por ano, cada um com 600 páginas – dos registros de mercadorias que passaram pela alfândega de Lisboa ao serem embarcadas para Luanda de 1748 a 1807. Nos 28 livros que já examinou, Menz contabilizou cerca de 2 mil lançamentos com nomes de pessoas e mercadorias e concluiu que, embora os negócios estivessem concentrados nas mãos de grandes negociantes como Silva, centenas de pessoas participavam, até mesmo padres, que poderiam enviar vinhos a serem trocados por escravos em Luanda. “Sim, padres”, diz ele. “Não havia problema nenhum. Pelo padrão religioso da época, o tráfico de escravos era uma forma de salvar almas do inferno porque os negros recebiam o batismo antes de entrarem nos navios rumo ao Brasil.”

Com esses documentos, Menz está ressaltando o papel central dos contratadores portugueses e dos contratos de exportação na geração dos mecanismos de crédito e de capitais associados ao tráfico de escravos. “O contratador funcionava com um banco, emprestando dinheiro por meio das livranças emitidas em Luanda como forma de pagamento pelas mercadorias”, diz ele. “Os papéis eram trocados por dinheiro no Brasil, quando os escravos eram vendidos.”


Vista panorâmica de Luanda em 1755, com a Sé, na cidade alta (à esquerda) e o forte de São Miguel (à direita)

Menz está confirmando uma hipótese do historiador Joseph Miller, da Universidade de Virgínia, Estados Unidos: “Miller propôs que os mercadores de Lisboa, graças ao controle do contrato de escravos, monopolizavam o financiamento do negócio, fazendo uso de uma série de privilégios garantidos por esses contratos e, desse modo, forneciam a maior parte das mercadorias que eram utilizadas para a compra dos escravos no interior de Angola”.
“Nessa época, os homens de negócio do Brasil atuariam principalmente no mercado de fretes, oferecendo transporte para a mercadoria humana a ser vendida no Brasil”, propõe Menz, apresentando uma alternativa a uma visão comum entre historiadores, segundo a qual os negociantes brasileiros é que controlavam o tráfico. “É esta a interpretação nos trabalhos de Luiz Felipe de Alencastro, Manolo Florentino, Roquinaldo Ferreira e Alexandre Vieira Ribeiro, mas existem pesquisas mais recentes que também reconhecem o protagonismo das comunidades mercantis de Lisboa ou dos mercadores de Luanda e Benguela, como as teses de Gustavo Acioli Lopes, Jaime Rodrigues, Daniel Domingues Dias Silva, Mariana Cândido e o doutorado, em andamento, de Jesus Bohorquez.”

Enquanto ao norte, nas regiões então chamadas de Guiné e Mina, os europeus ancoravam os navios nos portos e apenas compravam os escravos capturados por mercadores africanos, em Angola, por ser uma colônia portuguesa, a participação dos europeus era mais intensa. Em Luanda, a capital, o tráfico de escravos havia se tornado a principal fonte de renda da população formada por portugueses e mestiços, que representavam metade dos cerca de 5 mil habitantes da cidade (a outra metade era de escravos, parte deles à espera dos navios que os levariam para as Américas).

Os portugueses financiavam a compra de escravos no interior pelos comerciantes locais, em geral negros ou mulatos, que podiam dar calote ou morrer, por causa de malária, febre amarela e outras doenças comuns. O risco maior era a perda de escravos, que muitas vezes não resistiam à travessia do oceano rumo ao Brasil, reduzindo o lucro. Para evitar esse risco, os negociantes preferiam receber o pagamento em livranças ou em letras, trocadas no Brasil por ouro ou produtos coloniais como açúcar, algodão e tabaco, enviados para Lisboa.

A corrente de crédito funcionou até que Domingos Dias da Silva, como contratador, resolveu mudar as regras: parou de emprestar para os outros comerciantes, por meio das livranças, e forçou a compra de mercadorias que ele enviava de Lisboa. Não deu certo, porque quase ninguém tinha dinheiro vivo para usar. Segundo Menz, o governador de Angola, Francisco Inocêncio Coutinho, pressionado pelos comerciantes, escreveu para Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal e secretário de Estado do reino. Em 1770, para encerrar a confusão, Pombal extinguiu os contratos e determinou que os impostos sobre a venda de escravos seriam administrados diretamente pela Fazenda real. Apesar dos imprevistos, Silva aparentemente não faliu e anos depois morreu rico. O tráfico foi abolido em 1830, mas nos anos seguintes muitos escravos ainda foram capturados e enviados ilegalmente de Angola para o Brasil.

Projeto
Uma história econômica do tráfico de escravos em Angola: financiamento, fiscalidade, transporte (c. 1730-1807) (nº 2014/14896-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Maximiliano Mac Menz (Unifesp); Investimento R$ 37.344,11 (FAPESP).

Artigo científico