O BABALAÔ FALA: A AUTOBIOGRAFIA DE MARTINIANO ELISEU DO BOMFIM



O babalaô fala: a autobiografia de Martiniano Eliseu do Bomfim

Félix Ayoh'Omidire; Alcione M. Amos

Em outubro de 1940, Lorenzo Dow Turner, primeiro linguista afro-americano, chegou a Salvador, na Bahia, com a intenção de coletar informações sobre a cultura afro-brasileira.1 Seu principal interesse era investigar as sobrevivências culturais africanas na cultura afro-bahiana, principalmente com relação ao uso de línguas africanas. Turner foi um pioneiro em seu campo de estudos nos Estados Unidos. Ele determinou, na década de 1930, que a língua falada pelo povo gullah, dos estados da Carolina do Sul e da Geórgia, no sul dos Estados Unidos, não era, como estudiosos brancos tinham afirmado, "um inglês mal falado", tratando-se na verdade de uma língua distinta baseada em mais de 30 línguas africanas e no inglês. Eventualmente, o gullah foi identificado como sendo uma língua crioula. 

Em 1940, Turner ainda não tinha publicado os resultados de sua pesquisa entre os gullah. A investigação que estava a ponto de fazer no Brasil iria lhe fornecer uma visão mais completa das línguas africanas que haviam influenciado o gullah. Turner descobriu que em Salvador, Bahia cidade que, até o presente momento, é a mais africana das cidades brasileiras , havia um terreno fértil para sua pesquisa. As entrevistas que ele fez com afro-brasileiros, que foram gravadas para a posteridade, se tornariam uma fonte, ainda não muito bem explorada, de informações valiosas sobre sua língua e sua cultura.

Uma das pessoas entrevistadas por Turner em Salvador foi o famoso babalaô Martiniano Eliseu do Bomfim. Martiniano tinha nascido em 1859, de pais africanos livres. Era considerado um sábio da cultura afro-brasileira, especialmente do candomblé.3 Turner gravou muitas horas de músicas e narrativas do folclore africano, contadas por Martiniano. Este artigo reproduz o conteúdo das entrevistas que recontam a sua autobiografia. As entrevistas foram feitas na residência de Martiniano, no Caminho Novo do Taboão, número sete, entre doze de outubro e nove de dezembro de 1940. Muitos dos originais, gravados em discos de acetato, estão nos arquivos de música tradicional da Indiana University, nos Estados Unidos. Outros estão arquivados na coleção de Turner, no Anacostia Community Museum, em Washington, D.C. O material na Indiana University foi digitalizado e está disponível para pesquisadores mediante o pagamento de uma taxa. Também estão disponíveis as transcrições feitas pelos assistentes de Turner, que falavam iorubá, datadas da década de 1950. Este artigo inclui material contido nas gravações e em transcrições que se encontram na Coleção Africana da Biblioteca da Universidade Northwestern, em Evanston, Illinois. Partes das entrevistas foram reorganizadas para proporcionar maior clareza na sequência da narrativa e para evitar repetições. A narrativa de Martiniano foi extensamente anotada com informações adicionais obtidas de outras fontes, bem como de entrevistas que ele forneceu para outros autores. Todo esforço foi feito para esclarecer referências obscuras, especialmente aquelas relacionadas à família de Martiniano na África.

A importância dessa autobiografia está no fato de que foi gravada na própria voz de Martiniano e contém informações que ele supostamente pensava serem importantes. Ele enfatiza constantemente o seu vasto conhecimento da língua iorubá, que era, evidentemente, uma fonte de grande orgulho para ele, assim como de admiração pela comunidade afro-brasileira. Numa das gravações feitas por Turner, em uma celebração do 81º aniversário de Martiniano, em dezesseis de outubro de 1940, um admirador não identificado afirma em português que lamentava não ser capaz de falar iorubá e o quanto admirava Martiniano, "o professor", que era capaz de falar três línguas: português, iorubá e inglês.5 É interessante notar que, nessas entrevistas, Martiniano deu grande ênfase a sua participação no culto de Egúngún, mas não mencionou seu envolvimento no candomblé.

Existem algumas discrepâncias nas datas e fatos mencionados por Martiniano quando confrontados com o registro histórico e com entrevistas que ele forneceu para outros investigadores. No entanto, tais discrepâncias não diminuem a importância desta entrevista como um documento histórico. Espera-se que este material possa contribuir para o estudo da história da comunidade afro-brasileira na Bahia na primeira metade do século passado, e que seja também uma importante contribuição para o repertório de informações que já estão disponíveis sobre Martiniano.

O material é apresentado da seguinte maneira: o texto da entrevista, em iorubá, está 
acompanhado da tradução em português. Os comentários aparecem nas notas de rodapé. Além disso, um glossário aparece ao final do artigo, incluindo todas as palavras que aparecem em negrito no texto e nas notas de rodapé.

A co-autora gostaria de prestar seus agradecimentos ao Anacostia Community Museum da Smithsonian Institution, em Washington, D.C. pelo o apoio fornecido ao seu trabalho neste projeto. A Félix Ayoh'Omidire pela soberba tradução do iorubá para o inglês e por todo o apoio que ele lhe proporcionou esclarecendo as muitas dúvidas que teve ao produzir as anotações. Também agradece à Lisa Earl Castillo pelos comentários e sugestões, e à Maria Elisa Rodrigues Moreira pelo trabalho de edição do material em português. Quaisquer erros e omissões são de sua inteira responsabilidade.

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