William Cohen
PARECE PARADOXAL que Thomas Jefferson, um dos eternos heróis da democracia norte-americana, fosse também o proprietário de mais de 180 escravos exatamente à época em que proclamava que todos os homens foram criados iguais e foram "dotados por seu Criador" com os "direitos inalienáveis" à "vida, liberdade e à busca da felicidade". Além disso, ao longo da existência ele continuou afirmando que a escravidão era injusta e imoral. Em 1785 usara a frase "avareza e opressão" para caracterizar o interesse escravista e a contrastara com o "direito sagrado" à emancipação. Um ano depois, admirava-se ao constatar que patriotas norte-americanos que haviam suportado castigos físicos, fome e prisão nas mãos de seus opressores britânicos pudessem infligir "em seus semelhantes um cativeiro uma hora do qual produz mais infelicidade do que séculos daquele cativeiro contra o qual se insurgiram e combateram". No último ano de vida, Jefferson reiterou sua crença de que era ilegal "um homem apropriar-se para seu uso das faculdades de outro sem seu consentimento".
A maiora dos estudiosos de Jefferson tratou dessa contradição ou ignorando-a ou citando seus pontos de vista sobre a abolição e sustentando que seu papel como proprietário de escravos foi uma herança que lhe coube. Nascido num sistema escravista, argumentam, não poderia ele em sã consciência abandonar seus dependentes negros; fez o melhor que pôde nessa situação ruim, comportando-se como um senhor benevolente e compreensivo. De fato, o biógrafo mais competente e que mais a fundo pesquisou-lhe a vida afirma: "se o próprio senhor errou [no tratamento dispensado a seus escravos] ele o fez do lado da brandura".
Essa argumentação encontra apoio nas próprias observações de Jefferson. O mais conhecido de seus comentários é a resposta a uma carta de Edward Coles, um senhor de escravos da Virgínia, que, em 1814, insistia para que ele tomasse a liderança na causa da abolição e descrevia seu próprio plano de mudar-se para um estado livre. Jefferson respondeu concordando com os sentimentos de Coles e dizendo: "O amor à justiça e o amor ao país pleiteiam igualmente a causa do povo [escravo], e é para nós uma vergonha moral que eles a tenham pleiteado em vão por tão largo tempo, sem que isso produzisse um único esforço, nem, receio, bem pouca vontade séria de aliviá-los a eles e a nós mesmos de nossa condição, moral e politicamente condenável".
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William Cohen é pesquisador associado do Centro de Estudos Urbanos na Universidade de Chicago (EUA). Tradução de Almiro Pisetta. O original – Thomas Jefferson and the problem of slavery – foi publicado em The Journal of American History, v. LVI, n. 3, p. 503-526.
ACESSE:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142000000100008&lang=pt
PARECE PARADOXAL que Thomas Jefferson, um dos eternos heróis da democracia norte-americana, fosse também o proprietário de mais de 180 escravos exatamente à época em que proclamava que todos os homens foram criados iguais e foram "dotados por seu Criador" com os "direitos inalienáveis" à "vida, liberdade e à busca da felicidade". Além disso, ao longo da existência ele continuou afirmando que a escravidão era injusta e imoral. Em 1785 usara a frase "avareza e opressão" para caracterizar o interesse escravista e a contrastara com o "direito sagrado" à emancipação. Um ano depois, admirava-se ao constatar que patriotas norte-americanos que haviam suportado castigos físicos, fome e prisão nas mãos de seus opressores britânicos pudessem infligir "em seus semelhantes um cativeiro uma hora do qual produz mais infelicidade do que séculos daquele cativeiro contra o qual se insurgiram e combateram". No último ano de vida, Jefferson reiterou sua crença de que era ilegal "um homem apropriar-se para seu uso das faculdades de outro sem seu consentimento".
A maiora dos estudiosos de Jefferson tratou dessa contradição ou ignorando-a ou citando seus pontos de vista sobre a abolição e sustentando que seu papel como proprietário de escravos foi uma herança que lhe coube. Nascido num sistema escravista, argumentam, não poderia ele em sã consciência abandonar seus dependentes negros; fez o melhor que pôde nessa situação ruim, comportando-se como um senhor benevolente e compreensivo. De fato, o biógrafo mais competente e que mais a fundo pesquisou-lhe a vida afirma: "se o próprio senhor errou [no tratamento dispensado a seus escravos] ele o fez do lado da brandura".
Essa argumentação encontra apoio nas próprias observações de Jefferson. O mais conhecido de seus comentários é a resposta a uma carta de Edward Coles, um senhor de escravos da Virgínia, que, em 1814, insistia para que ele tomasse a liderança na causa da abolição e descrevia seu próprio plano de mudar-se para um estado livre. Jefferson respondeu concordando com os sentimentos de Coles e dizendo: "O amor à justiça e o amor ao país pleiteiam igualmente a causa do povo [escravo], e é para nós uma vergonha moral que eles a tenham pleiteado em vão por tão largo tempo, sem que isso produzisse um único esforço, nem, receio, bem pouca vontade séria de aliviá-los a eles e a nós mesmos de nossa condição, moral e politicamente condenável".
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William Cohen é pesquisador associado do Centro de Estudos Urbanos na Universidade de Chicago (EUA). Tradução de Almiro Pisetta. O original – Thomas Jefferson and the problem of slavery – foi publicado em The Journal of American History, v. LVI, n. 3, p. 503-526.
ACESSE:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142000000100008&lang=pt