A África nos genes do povo brasileiro

Análise de DNA revela regiões que mais alimentaram o tráfico de escravos para o país . Ricardo Zorzetto*

Durante pouco mais de três séculos de tráfico negreiro o trecho da África Ocidental que vai do Senegal à Nigéria possivelmente forneceu muito mais escravos ao Brasil do que se imaginava. A proporção de homens e mulheres capturados nessa região e enviados à força para cá pode ter superado – e muito – os 10% do total estimado anos atrás pelos historiadores norte-americanos Herbert Klein e David Eltis, estudiosos do tráfico de escravos no Atlântico. Os argumentos que agora servem de suporte à revisão dos cálculos, em especial para o Sudeste do Brasil, não são apenas históricos, mas genéticos. Analisando a constituição genética de pessoas que vivem em três capitais brasileiras, os geneticistas Sérgio Danilo Pena e Maria Cátira Bortolini estão ajudando a resgatar parte dessa história ainda não de todo esclarecida sobre a origem dos quase 5 milhões de escravos africanos que chegaram aos portos de Rio de Janeiro, Salvador e Recife e contribuíram para a formação do povo brasileiro.
Em dois estudos recém-concluídos a equipe de Pena, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e a de Maria Cátira, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compararam o padrão de alterações genéticas compartilhado por africanos e brasileiros. Desse modo, conseguiram estimar a participação de diferentes regiões africanas no envio de escravos para o Brasil, o último país da América Latina a eliminar a escravidão com a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
Os resultados confirmaram que foram três as regiões da África – a Oeste, a Centro-Oeste e a Sudeste – que mais exportaram mão-de-obra africana para o país até 1850, quando o ministro da Justiça do Império Eusébio de Queirós formulou uma lei tornando crime o tráfico de escravos. Até aí, nada muito novo, e a genética apenas corrobora as informações históricas a respeito de uma das situações mais cruéis a que um ser humano pode submeter outro. Já se sabia que o Brasil foi um dos poucos, se não o único, países das Américas a receber africanos de todas as origens.
A novidade é o envolvimento maior no tráfico negreiro da África Ocidental, também conhecida como Costa Oeste, região de onde vieram povos como os iorubás, os jejes e os malês, que exerceram forte influência social e cultural no Nordeste brasileiro, em especial na Bahia.
Durante os três séculos em que os portugueses controlaram o tráfico no Atlântico – o mais antigo, de mais longa duração e maior em termos numéricos –, a proporção de escravos embarcados no Oeste, no Centro-Oeste e no Sudeste da África oscilou bastante. Avaliando registros de viagem africanos, Herbert Klein, da Universidade de Colúmbia, e David Eltis, da Universidade Emory, calcularam que, no total, 10% dos escravos teriam vindo da região Oeste da África e 17% da Sudeste.
O principal fornecedor de escravos seria mesmo o Centro-Oeste, onde ficava a colônia portuguesa de Angola, que teria contribuído com 73% dos africanos enviados para o Brasil amontoados no porão de pequenos navios. “Os dados sobre o tráfico de escravos ainda são incompletos e os historiadores aceitam que a maior parte veio da região de Angola”, comenta Marina Mello Souza, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em história africana.
Cientes de que os registros de viagem nem sempre refletem com precisão o passado, nos últimos tempos os historiadores passaram a recorrer também à genética na tentativa de compreender melhor o que de fato ocorreu. “Nossas estimativas anteriores se basearam em amostras parciais”, disse Klein à Pesquisa FAPESP.
“Estamos revendo essas projeções, com base no trabalho de geneticistas e na revisão dos dados de viagem que a equipe de David Eltis vem investigando na Universidade Emory.” E, nesse ponto, os trabalhos de Pena e Maria Cátira podem colaborar para esse reexame histórico. A análise do material genético compartilhado por brasileiros e africanos revelou que a proporção de escravos oriundos do Oeste da África – entre Senegal e Nigéria – pode ter sido de duas a quatro vezes maior que o contabilizado até o momento, bem mais próximo dos números exportados por Angola.

Origens e destinos


Superior à esperada, a contribuição do Oeste africano provavelmente não se distribuiu igualmente pelo país. Pena e sua aluna de doutorado Vanessa Gonçalves analisaram amostras de sangue de 120 paulistas que classificavam a si próprios e aos seus pais e avós como sendo pretos, seguindo a nomenclatura adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que agrupa os brasileiros em brancos, pretos e pardos – os movimentos de afrodescendentes em geral usam a palavra negro para se referir a pretos e pardos.
Quatro de cada dez pretos paulistas apresentavam material genético típico do Oeste africano. Essa proporção, no entanto, foi menor no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, segundo artigo da equipe da UFRGS a ser publicado no American Journal of Physical Anthropology. Dos 94 pretos cariocas testados por Maria Cátira e Tábita Hünemeier, 31% traziam no sangue a assinatura genética do Oeste africano, apresentada por apenas 18% dos 107 pretos gaúchos. Além de indicar origens e destinos, esses dados talvez expliquem a penetração heterogênea no país do candomblé, religião com importantes traços culturais iorubás e jejes.
Na busca pelas origens do povo brasileiro, não são apenas os historiadores que recorrem aos achados genéticos. Também os geneticistas precisam, por vezes, voltar aos livros de história, sociologia ou antropologia para compreender o que as características genéticas lhes mostram. Ao menos um fato histórico ajuda a entender por que a proporção de pretos com origem no Oeste africano é mais elevada em São Paulo do que a do Rio ou a de Porto Alegre. Nos séculos XVI e XVII, os africanos oriundos do Oeste chegaram aos portos de Salvador e Recife para em seguida serem vendidos aos proprietários dos engenhos de cana-de-açúcar do Nordeste.
Mais tarde, porém, a decadência da economia açucareira levou ao deslocamento da mão-de-obra escrava para as plantações de café que floresciam no estado de São Paulo. Antes dessa migração interna, entre o fim do século XVIII e o início do XIX, São Paulo já apresentava uma concentração de escravos do Oeste africano muito mais elevada que no restante do país. De acordo com Klein, as razões para essa diferença ainda não são completamente compreendidas, mas talvez possam ser parcialmente explicadas pela importação de mão-de-obra diretamente do Oeste africano.
Maria Cátira explica a proporção mais baixa de material genético típico do Oeste da África entre os pretos de Porto Alegre pelo fato de os escravos chegarem ao sul do país por via indireta: 80% da mão-de-obra africana do Rio Grande do Sul era proveniente do Rio de Janeiro, onde a presença de povos do Oeste africano era mais baixa que no Nordeste brasileiro. Ainda assim transparece na composição genética dos pretos brasileiros o tráfico mais intenso para o país de escravos de Angola, no Centro-Oeste africano. Uma proporção menor (12%), mas significativa, veio da região de Moçambique, no Sudeste, sobretudo depois que a Inglaterra passou a controlar mais rigidamente os portos de embarque na costa atlântica da África.

Presença feminina

A contribuição africana para a composição genética do brasileiro não foi desigual apenas do ponto de vista geográfico. Enquanto os homens africanos foram os braços e as pernas que movimentaram a economia açucareira do Nordeste, as mulheres exerceram um encanto especial, de cunho sexual, sobre os senhores de engenho de origem européia, como o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre registrou em 1933 em Casa-grande & senzala, ensaio clássico sobre a formação do país. Por essa razão, o preto brasileiro guarda hoje em seu material genético uma contribuição maior das mulheres do que dos homens africanos, embora o volume do tráfico masculino tenha sido maior.
Essa desigualdade, que os geneticistas chamam de assimetria sexual, torna-se evidente quando se comparam dois tipos de material genético. O primeiro é o DNA encontrado nas mitocôndrias, usinas de energia situadas na periferia das células. Transmitido pelas mães aos filhos de ambos os sexos, o chamado DNA mitocondrial permite conhecer a origem geográfica da linhagem materna de uma pessoa. O segundo tipo de material genético estudado é o cromossomo Y, que os pais passam apenas para seus filhos homens e serve como indicador da linhagem paterna.
A equipe de Pena constatou que 85% dos pretos de São Paulo tinham DNA mitocondrial africano, enquanto apenas 48% apresentavam cromossomo Y característico da África. De modo semelhante, o grupo coordenado por Maria Cátira viu que, em 90% dos pretos do Rio e em 79% dos de Porto Alegre, o material genético africano era de origem materna. Do lado paterno, só 56% do Rio e 36% de Porto Alegre tinham material genético paterno típico da África. “Esses números comprovam a história de exploração sexual das escravas pelos brancos”, comenta Pena, “uma história nada bela porque se baseava em relação de poder”.
Essa assimetria sexual confirmada pela genética já havia sido antes documentada e detalhada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, no livro Raízes do Brasil, pelo antropólogo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, além de nos livros de Gilberto Freyre. Ela se tornou inconteste quando Pena e Maria Cátira começaram há cerca de dez anos, em trabalhos paralelos e complementares, a investigar a formação genética de brancos e pretos brasileiros com o auxílio do DNA mitocondrial e do cromossomo Y.
As primeiras evidências de que o brasileiro carregava em suas células o material genético de índios, africanos e europeus surgiram em abril de 2000, quando o país comemorou os cinco séculos da chegada do colonizador português a este lado do Atlântico ou os 500 anos do descobrimento do Brasil. Aproveitando a data oportuna, Pena publicou – primeiro na revista Ciência Hoje, de divulgação científica, e depois no periódico acadêmico American Journal of Human Genetics – o trabalho que chamou de “Retrato molecular do Brasil”. Nesse estudo com 200 brasileiros das regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul, o geneticista da UFMG constatou que, na realidade, 33% descendiam de índios por parte de mãe e 28% de africanos. Em outro estudo, publicado em 2001, mostrou que 98% dos brancos descendiam de europeus pelo lado paterno. Obviamente, a colaboração de índios e negros variava de acordo com a região do país.
Essa era a demonstração genética do que já se conhecia do ponto de vista histórico, sociológico e antropológico. Os primeiros grupos de colonizadores europeus que chegaram ao Brasil depois de 1500 eram formados quase exclusivamente por homens. Milhares de quilômetros distantes de casa, tiveram filhos com as índias. Mais tarde, com a chegada dos escravos durante o ciclo econômico da cana-de-açúcar, passaram a engravidar também as africanas.
A análise do material genético de pretos feita por Pena e Maria Cátira reforça esses resultados: 85% dos pretos brasileiros têm uma ancestral africana, mas os homens africanos estão representados em apenas 47% dos pretos – o restante tem ancestrais europeus em sua linhagem paterna. “É o outro lado da moeda”, diz Pena.

Retrato molecular

Mas o que o DNA mitocondrial e o cromossomo Y de fato revelam? Depende. São ferramentas genéticas fundamentais para determinar a composição de uma população porque são blocos de DNA que não se misturam com outros genes e passam inalterados de uma geração a outra. Mas esse material genético contém muito pouca informação sobre as características físicas de um indivíduo. Ter DNA mitocondrial africano, por exemplo, indica apenas que em algum momento do passado – recente ou não – houve uma mulher africana na linhagem materna daquela pessoa. É por isso que alguém com cabelos louros e olhos azuis pode ter entre suas ancestrais uma africana de pele escura, assim como um homem de pele escura e cabelos encaracolados pode ser descendente de europeus.
Na tentativa de detalhar essa razão, Pena decidiu investigar um terceiro tipo de material genético: o chamado DNA autossômico, que se encontra no núcleo de quase todas as células do corpo. Pena e Flavia Parra selecionaram dez trechos do DNA autossômico típicos da população africana e criaram uma escala chamada índice de ancestralidade africana: quanto mais desses trechos uma pessoa possui, mais próxima ela estaria de um africano. Em seguida, foram procurá-los na população brasileira. Os pesquisadores mineiros testaram esse índice em 173 homens brancos, pretos e pardos de Queixadinha, interior de Minas Gerais, e viram que, em média, os três grupos apresentavam proporções semelhantes de ancestralidade africana, que era intermediária entre a de um português do Porto, em Portugal, e a de um africano da ilha de São Tomé, na costa Oeste da África.
Em outro estudo, Pena e a bióloga Luciana Bastos-Rodrigues analisaram 40 outros trechos de DNA autossômico e descobriram que eles são suficientes para distinguir um indivíduo africano de outro europeu ou de indígena nativo das Américas. Ao comparar esses mesmos trechos de 88 brancos e 100 pretos brasileiros com os de africanos, europeus e indígenas, Pena e Luciana observaram altos níveis de mistura gênica: tanto os brancos como os pretos apresentavam características genéticas de europeus e de africanos. Essa mistura foi ainda mais evidente entre os pretos, que, segundo Pena, “resultam de um processo de intensa miscigenação”.
Com base nesses resultados obtidos em dez anos de investigação das características genéticas do brasileiro, Pena e Maria Cátira não têm dúvida em afirmar que, ao menos no caso brasileiro, não faz o menor sentido falar em raças, uma vez que a cor da pele, determinada por apenas 6 dos quase 30 mil genes humanos, não permite saber quem foram os ancestrais de uma pessoa.
O geneticista brasileiro Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago, Estados Unidos, concorda, embora afirme que as diferenças genéticas entre populações de continentes distintos podem ser úteis na área médica – por indicar capacidades diferentes de metabolizar medicamentos – e usadas para definir raça. “Isso não significa que as raças sejam profundamente diferentes entre si nem superiores umas às outras”, diz. Para ele, o aumento da miscigenação nos últimos séculos erodiu as divisões entre esses grupos, como no caso brasileiro, e deve tornar obsoleto o conceito genético de raças.
Como já disse Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala, “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil –, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.
________________________________________________
Colaborador desta postagem: Carlos Júnior.