João
Fellet - @joaofellet
Da BBC
Brasil em Washington (EUA)
Uma
sala com peças de um navio que levava para o Brasil 500 mulheres, crianças e
homens escravizados é a principal atração do novo museu sobre a história dos
americanos negros, em Washington.
Numa
segunda-feira de outubro, era preciso passar 15 minutos na fila para entrar na
sala com objetos do São José - Paquete de África, no subsolo do Museu de
História e Cultura Afroamericana.
Inaugurado
em setembro pelo Smithsonian Institution, o museu custou o equivalente a R$ 1,7
bilhão se tornou o mais concorrido da capital americana: os ingressos estão
esgotados até março de 2017.
Em
1794, o São José deixou a Ilha de Moçambique, no leste africano, carregado de
pessoas que seriam vendidas como escravas em São Luís do Maranhão. A embarcação
portuguesa naufragou na costa da África do Sul, e 223 cativos morreram.
Visitantes
- em sua maioria negros americanos - caminhavam em silêncio pela sala que
simula o porão de um navio negreiro, entre lastros de ferro do São José e
algemas usadas em outras embarcações (um dos pares, com circunferência menor,
era destinado a mulheres ou crianças).
"Tivemos
12 negros que se afogaram voluntariamente e outros que jejuaram até a morte,
porque acreditam que quando morrem retornam a seu país e a seus amigos",
diz o capitão de outro navio, em relato afixado na parede.
Prova de existência
Expor
peças de um navio negreiro era uma obsessão do diretor do museu, Lonnie Bunch.
Em entrevista ao The Washington Post, ele disse ter rodado o mundo atrás dos
objetos, "a única prova tangível de que essas pessoas realmente
existiram".
Destroços
do São José foram descobertos em 1980, mas só entre 2010 e 2011 pesquisadores
localizaram em Lisboa documentos que permitiram identificá-lo. Um acordo entre
arqueólogos marinhos sul-africanos e o Smithsonian selou a vinda das peças para
Washington.
Que o
destino do São José fosse o Brasil não era coincidência, diz Luiz Felipe de
Alencastro, professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne e um dos
maiores especialistas na história da escravidão transatlântica.
Ele
afirma à BBC Brasil que fomos o paradeiro de 43% dos africanos escravizados
enviados às Américas, enquanto os Estados Unidos acolheram apenas 0,5%.
Segundo
um estudo da Universidade de Emory (EUA), ao longo da escravidão ingressaram
nos portos brasileiros 4,8 milhões de africanos, a maior marca entre todos os
países do hemisfério.
Esse
contingente, oito vezes maior que o número de portugueses que entraram no
Brasil até 1850, faz com que Alencastro costume dizer que o Brasil "não é
um país de colonização europeia, mas africana e europeia".
O fluxo
de africanos também explica porque o Brasil é o país com mais afrodescendentes
fora da África (segundo o IBGE, 53% dos brasileiros se consideram pretos ou
pardos).
Por
que, então, o Brasil não tem museus ou monumentos sobre a escravidão
comparáveis ao novo museu afroamericano de Washington?
Apartheid e pilhagem da África
Para
Alencastro, é preciso considerar as diferenças nas formas como Brasil e EUA
lidaram com a escravidão e seus desdobramentos.
Ele diz
que, nos EUA, houve uma maior exploração de negros nascidos no país, o que
acabaria resultando numa "forma radical de racismo legal, de
apartheid".
Até a
década de 1960, em partes do EUA, vigoravam leis que segregavam negros e
brancos em espaços públicos, ônibus, banheiros e restaurantes. Até 1967,
casamentos inter-raciais eram ilegais em alguns Estados americanos.
No
Brasil, Alencastro diz que a escravidão "se concentrou muito mais na
exploração dos africanos e na pilhagem da África", embora os brasileiros
evitem assumir responsabilidade por esses processos.
Ele
afirma que muitos no país culpam os portugueses pela escravidão, mas que
brasileiros tiveram um papel central na expansão do tráfico de escravos no
Atlântico.
Alencastro
conta que o reino do Congo, no oeste da África, foi derrubado em 1665 em
batalha ordenada pelo governo da então capitania da Paraíba.
"O
pelotão de frente das tropas era formado por mulatos pernambucanos que foram
barbarizar na África e derrubar um reino independente", ele diz.
Vizinha
ao Congo, Angola também foi invadida por milicianos do Brasil e passou vários anos
sob o domínio de brasileiros, que a tornaram o principal ponto de partida de
escravos destinados ao país.
"Essas
histórias são muito ocultadas e não aparecem no Brasil", ele afirma.
Reparações históricas
Para a
brasileira Ana Lucia Araújo, professora da Howard University, em Washington,
"o Brasil ainda está muito atrás dos EUA" na forma como trata a
história da escravidão.
"Aqui
(nos EUA) se reconhece que o dinheiro feito nas costas dos escravos ajudou a
construir o país, enquanto, no Brasil, há uma negação disso", ela diz.
Autora
de vários estudos sobre a escravidão nas Américas, Araújo afirma que até a
ditadura (1964-1985) era forte no Brasil a "ideologia da democracia
racial", segundo a qual brancos e negros conviviam harmonicamente no país.
São
recentes no Brasil políticas para atenuar os efeitos da escravidão, como cotas
para negros em universidades públicas e a demarcação de territórios
quilombolas.
Ela diz
que ainda poucos museus no Brasil abordam a escravidão, "e, quando o
fazem, se referem à população afrobrasileira de maneira negativa,
inferiorizante".
Segundo
a professora, um dos poucos espaços a celebrar a cultura e a história
afrobrasileira é o Museu Afro Brasil, em São Paulo, mas a instituição deve sua
existência principalmente à iniciativa pessoal de seu fundador, o artista
plástico Emanoel Araújo.
E só
nos últimos anos o Rio de Janeiro passou a discutir o que fazer com o Cais do
Valongo, maior porto receptor de escravos do mundo. Mantido por voluntários por
vários anos, o local se tornou neste ano candidato ao posto de Patrimônio da
Humanidade na Unesco.
Para a
professora, museus e monumentos sobre a escravidão "não melhoram as vidas
das pessoas, mas promovem um tipo de reparação simbólica ao fazer com que a história
dessas populações seja reconhecida no espaço público".
Visibilidade e representação
Para o
jornalista e pesquisador moçambicano Rogério Ba-Senga, a escravidão e outros
pontos da história entre Brasil a África têm pouca visibilidade no país, porque
"no Brasil os brancos ainda têm o monopólio da representação social dos
negros".
"Há
muitos negros pensando e pesquisando a cultura negra no Brasil, mas o centro
decisório ainda é branco", diz Ba-Senga, que mora em São Paulo desde 2003.
Para
ele, o cenário mudará quando negros forem mais numerosos na mídia brasileira -
"para que ponham esses assuntos em pauta" - e nos órgãos públicos.
Para
Alencastro, mesmo que o Estado brasileiro evite tratar da escravidão, o tema
virá à tona por iniciativa de outros grupos.
"Nações
africanas que foram pilhadas se tornaram independentes. Há nesses países
pessoas estudando o tema e uma imigração potencialmente crescente de africanos
para o Brasil", ele diz.
Em
outra frente, o professor afirma que movimentos brasileiros em periferias e
grupos quilombolas pressionam para que os assuntos ganhem espaço.
"Há
hoje uma desconexão entre a academia e o debate no movimento popular, mas logo,
logo tudo vai se juntar, até porque a maioria da população brasileira é
afrodescentente. Os negros são maioria aqui."
ACESSE: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37771180