Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S.Paulo
Roger Bastide (1898-1974) veio ao Brasil em 1938 para lecionar
sociologia na então recém-criada Universidade de São Paulo. Aqui chegou
para substituir ninguém menos que Claude Lévi-Strauss, futuramente o
nome mais forte do estruturalismo. Como seu antecessor, Bastide também
mergulhou de cabeça na cultura do País. Trazia na bagagem a formação
humanística europeia, sedimentada na velha França e, em boa parte,
usou-a para interpretar a cultura nova com a qual se deparava.
Visitou o País de alto a baixo, tentou entendê-lo e escreveu muito
sobre ele. Deixou livros fundamentais como Psicanálise do Cafuné e
Estudos Afro-Brasileiros. Mas também imprimiu sua marca em artigos para
jornais, catálogos de exposição e revistas. Impressões do Brasil
(Imprensa Oficial), com organização e prefácio de Fraya Frehse e Samuel
Titan Jr., resgata esses escritos há muito fora de circulação sob a
forma de um livro luxuoso, com edição caprichada, papel de alta
qualidade e muito bem ilustrado. É um prazer para o leitor voltar-se
para o texto tão iluminador de Bastide, e sob condições tão atraentes.
Impressões do Brasil se compõe de 11 artigos, de tamanhos variados.
Há desde o artigo de jornal, breve (mas brevidade dos jornais de então,
que podiam abrigar textos de até uma página sem qualquer sentimento de
culpa), até ensaios de maior fôlego, publicados em capítulos, como as
novelas de folhetim, com periodicidade semanal. Da coletânea constam
quatro artigos originalmente publicados no Estado: Igrejas Barrocas e
Cavalinhos de Pau (1944), O Oval e a Linha Reta (1944), Ensaios de Uma
Estética Afro-Brasileira (1948-1949) e Estética de São Paulo (1951).
É curioso ver como os artigos, dispostos em ordem cronológica,
testemunham o processo de ambientação do intelectual francês no Brasil. O
primeiro, Pintura e Mística (1938), trata de uma questão mais geral,
expressa pelo título, ou seja, de como a arte, em especial a pintura,
aproxima-se da mística pela busca de restauração de uma unicidade
perdida (uma representação da Queda, claro). Da mesma forma, no segundo,
Presença da África (1940), é sobre um tema da pintura francesa - a
presença de personagens oriundos das colônias na representação pictórica
de grandes artistas - que ele se debruça.
Mas logo começam a surgir textos que mostram a profunda imersão de
Bastide na cultura brasileira. E, no primeiro exemplar dessa espécie,
Machado de Assis, Paisagista (1940), Bastide dá prova de leitura
absolutamente original do nosso maior escritor. A singularidade de
abordagem já vem explícita no título.
Foi preciso uma sensibilidade outra, um olhar estrangeiro, para
detectar um erro recorrente na análise de Machado, que o classificava
como um mau paisagista, escritor avesso à descrição de ambientes e do
entorno físico das suas histórias. O engano tomou forma de anedota na
frase famosa "As casas de Machado de Assis não têm jardim". Pelo
contrário, como mostra Bastide, a natureza está bem presente à narrativa
machadiana, apenas que profundamente integrada à estrutura da trama.
Basta pensar em um dos seus romances maiores, Dom Casmurro,
necessariamente ambientado na cidade litorânea que dá outro sentido aos
"olhos de ressaca" de Capitu e inclui a possibilidade do mar revolto,
que carrega Escobar e sela para sempre a dúvida em Bentinho. Hoje essa
presença implícita da natureza na obra de Machado é quase um
lugar-comum. Mas foi preciso um leitor francês para percebê-la.
Essas sacadas se sucedem, de ensaio em ensaio. Em O Oval e a Linha
Reta, Bastide discute a predileção de Lasar Segall pela linha curva.
Como não era um formalista, não se contenta em detectar a persistência
da escolha formal, mas a mostra como necessária para determinado tipo de
expressão. Havia ideias em jogo e estas pediam determinada forma e não o
contrário. Luminosos também são os ensaios consagrados ao barroco
(Igrejas Barrocas e Cavalinhos de Pau, A Volta do Barroco e Variações
Sobre a Porta Barroca) e também aquele em que Bastide evoca a sua cidade
de adoção (Estética de São Paulo). Por fim, é no caudaloso Ensaio de
Uma Estética Afro-Brasileira que reencontramos Bastide em seu universo
preferencial, uma mística que se aproxima da arte, sem que uma se reduza
a outra.
ACESSE A FONTE E LEIA NA ÍNTEGRA: