Em
2010, os negros brasileiros passam a formar a maioria da população do
país. A
mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o
nosso
passado e desafios para o nosso futuro.
No
século 19, o Império do Brasil aparece como a única nação que praticava o
tráfico negreiro em larga escala.
Alvo
da pressão britânica, o comércio de africanos passou a ser proscrito por
uma
rede de tratados que a Inglaterra teceu no Atlântico. Na sequência do
tratado de
1826, a lei de 7 de novembro de 1831 proibiu o comércio de africanos no
Brasil.
Entretanto,
760 mil indivíduos vindos da África foram trazidos entre 1831 e 1856,
num
circuito de tráfico clandestino.
Ora,
a lei de 1831 assegurava a liberdade imediata aos africanos introduzidos
no país
após a proibição.
A
partir daí, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram
considerados
sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do Código Criminal
de
1830.
Porém,
o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime
de
sequestro, deixando livre curso ao crime correlato, a escravização de
pessoas
livres.
Guerreira Angolana Jinga
Imoral
e ilegal
Os
760 mil africanos desembarcados até 1856 -e a totalidade de seus
descendentes-
continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888. Ou seja,
boa
parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não
era
escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda
-primeiro e
sobretudo- ilegal.
Tenho
para mim que esse pacto dos sequestradores constitui o pecado original
da
sociedade e da ordem jurídica brasileira. Firmava-se o princípio da
impunidade e
do casuísmo da lei. Consequentemente, não são só os negros brasileiros
que pagam
o preço da herança escravista.
Outra
deformidade gerada pelo sistema refere-se à violência policial.
Depois
da Independência, no Brasil, como no sul dos EUA, o escravismo passou a
ser
consubstancial à organização das instituições nacionais.
Entre
as múltiplas contradições engendradas por essa situação, uma relevava do
Código
Penal: como punir o escravo delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o
senhor do
usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena de prisão? O quadro
legal
definiu-se em dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, no
artigo
179, a extinção das punições físicas. "Desde já ficam abolidos os
açoites, a
tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis."
Conforme
os princípios do iluminismo, ficavam preservadas as liberdades e a
dignidade dos
homens livres. Num segundo momento, o artigo 60 do Código Criminal
reatualiza a
pena de tortura: "Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a
capital
ou de galés, será condenado na de açoites...".
Com
o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido
o
dilema. Oficializada até o final do Império, essa prática punitiva
atingiu as
camadas desfavorecidas, travando o advento de uma política fundada na
liberdade
individual e nos direitos humanos. Uma terceira deformidade gerada pelo
escravismo afeta o estatuto da cidadania.
É
sabido que até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros
alforriados, podiam ser eleitores de primeiro grau, que elegiam
eleitores de
segundo grau, os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois
de
1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores. Em 1882, o voto dos
analfabetos foi vetado.
Decidida
no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava barrar o acesso do
corpo
eleitoral aos libertos. Gerou-se uma infracidadania que perdurou até
1985,
quando foi autorizado o voto do analfabeto. Mas a exclusão foi mais
impactante
na população negra, em que o analfabetismo registrava, e continua
registrando,
taxas proporcionalmente mais altas do que entre os brancos.
Nascidas
no século 19, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram
o país
inteiro. Por essa razão, ao agir em sentido contrário, a redução das
discriminações que ainda pesam sobre os negros consolidará nossa
democracia.
Democracia
Não
se trata aqui de uma lógica indenizatória, destinada a garantir direitos
usurpados de uma comunidade específica -como foi o caso, em boa medida,
nos
julgamentos sobre as terras indígenas. Trata-se, sobretudo, de inscrever
a
discussão sobre as cotas no aperfeiçoamento da democracia.
Nesse
sentido, a arguição de inconstitucionalidade impetrada no Supremo
Tribunal
Federal [que analisa a constitucionalidade do sistema de cotas da
Universidade
de Brasília] revela-se obsoleta. Na verdade, as cotas raciais
beneficiaram e
beneficiam dezenas de milhares de estudantes nas universidades privadas
no
quadro do ProUni e 52 mil estudantes nas universidades públicas,
funcionando há
vários anos, com grande proveito para a comunidade acadêmica e para o
país.
Os
incidentes suscitados pelas cotas raciais são mínimos e muitíssimo menos
graves
do que as truculências perpetradas nos trotes universitários. Como no
caso do
plebiscito sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, o debate sobre
as cotas
raciais atravessa as linhas partidárias. Aliás, as primeiras medidas de
política
afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido,
pelo
governo FHC.
A
existência de alianças transversais deve nos conduzir, mesmo em ano de
eleição,
a um debate onde os argumentos possam ser analisados a fim de contribuir
para a
superação da desigualdade racial que pesa sobre a democracia
brasileira.
(Folha
de SP, 7/3)
Colaborador desta postagem: J. J. Reis