Por Felipe Milanez
Os últimos e dramáticos dias de vida da mais velha
sobrevivente de um massacre a uma tribo da Amazônia
Na
quinta-feira, 1º de outubro de 2009, o sertanista Altair Algayer, o
Alemão, amanheceu apreensivo. Fora uma noite tensa, praticamente em
claro. A cada zunido diferente de inseto ou ranger mais estridente de
galhos, o ouvido despertava o sentido de alerta e voltava toda
concentração para o som não identificado. Seria o índio Pupak, filho
adotivo da velha índia Ururu, vindo avisá-la da morte da mãe?
Alemão
levantou-se antes de o sol nascer e vestiu uma bermuda velha. Deixou de
lado a camisa e preferiu pôr os pés direto no chão. Por volta das 6h,
foi até a maloca ver como estava a índia. Algayer, descendente de
migrantes alemães do Sul do Brasil, estava mais branco do que de
costume. Transpirava mais e parecia bem mais magro. Inquieto, não sabia
como agir. Imaginava ter feito o possível ao longo de uma semana
terrivelmente infinita. Sentia-se impotente, indignado
consigo mesmo. Imaginava que coisas tristes aconteceriam e ele não
teria como impedir. Restava apenas acompanhar os últimos instantes de
vida de Ururu.
Aparentemente tudo estava normal. A pressão
arterial de Ururu se mantinha estável e, às 7h da manhã, estava em 100
por 50, conforme constatou a enfermeira Jussara de Faria Castro, esposa
de Alemão. O pulso era acelerado, rápido; o punho, fino, cansado - nada
diferente dos últimos dias. Mas a respiração estava mais ruidosa, e a
índia transparecia ansiedade. "Está muito difícil vê-la cada dia
piorando", dizia a enfermeira. Ururu não conseguia permanecer deitada na
rede, onde a dobra da garganta segurava o ar, e preferiu ser colocada
no chão. Jussara levou um pano úmido e o passou delicadamente no corpo
da índia, que recebeu a higiene como uma massagem. Algayer varreu o chão
de terra com uma palha, alimentou o fogo e ajeitou cuidadosamente os
pertences da índia que ele ainda
chama carinhosamente de "iamoi" - "mãe" na língua akuntsu.
Dentro
da maloca, a fumaça da fogueira irritava os olhos. Próximos, apenas o
filho e as índias akuntsus. Fora, um calor acachapante deixava todo
mundo amolecido. O ar estava seco. Reinava um silêncio quase absoluto
entre os funcionários da Funai e os enfermeiros presentes. Uma sensação
de angústia dominava o ambiente. A resistência apresentada pela índia
akuntsu em sua última semana de vida havia sido tenaz, mas agora se
esvaíra.
Nos anos 1980, Marcelo dos Santos era um jovem e
promissor indigenista da Funai, em início de carreira. Vindo de São
Paulo, viveu tempos que eram convidativos para aventuras na Amazônia.
Ele foi designado para trabalhar junto dos índios nhambiquara, na
fronteira de Rondônia com o Mato Grosso. Os nhambiquaras são um povo
fascinante, com costumes que eram descritos como selvagens, mas que
encantaram o antropólogo Claude Levy-Strauss a
ponto de transformar sua percepção de sociedade. Santos também se
fascinou por aqueles índios. Olhos azuis profundos, farta barba ruiva e
cabelos claros, ele representava um tipo cada vez mais comum por aquelas
bandas amazônicas. Rondônia, nessa época, ainda recebia uma avalanche
de migrantes sulistas. Muitos chegavam iludidos por promessas de terra e
crédito do governo militar e se deparavam com condições muito
diferentes das que esperavam.
Conseguir terra era um desafio pelo
qual não imaginavam ter de passar, já que o slogan corrente dizia haver
"terras sem homens para homens sem terra". Grandes extensões de
florestas eram divididas em glebas, e posteriormente loteadas pelo Incra
para a colonização. À Funai cabia determinar onde havia índios; ao
antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão
antecessor ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama), definir as
áreas de preservação - o resto era passível de ocupação. Desde 1952,
quando o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) transferiu povos do sul de
Rondônia para o Norte do estado, próximo a Guajara-Mirim, a região era
considerada "vazia" e passível de ocupação. E assim sucederam os
loteamentos, a ocupação, a exploração predatória das madeiras, a luta
pela terra entre os posseiros e grileiros, e o mais intenso processo de
desmatamento já visto na história. Em um desses espaços de terra, na
gleba chamada Corumbiara, estavam os akuntsus, vivendo, como sempre
fizeram, da floresta.
"Em 1985, fui para uma fazenda verificar se
havia índios por lá. Um fazendeiro precisava de uma certidão da Funai
negando a existência de índios naquelas terras para conseguir crédito no
banco", recorda-se Santos. "Mas, quando cheguei, um peão me disse:
'Olha, aqui não tem índio não, mas parece que aqui do lado andaram
matando uns por estes
dias'." Santos deparou-se com uma aldeia destruída - restos de
moradias, cerâmicas, flechas e cápsulas de revólveres. Santos, então,
chamou o indigenista e cineasta Vincent Carelli para imortalizar os
vestígios do massacre e preparar uma denúncia pública.
Desde
então, convencido de que havia índios na região, Santos passou a fazer
buscas em toda área de floresta que não havia sido derrubada. Sofreu
ameaças, boicote da sede da Funai em Brasília e pressão de políticos
locais. Dez anos depois, em 1995, a tecnologia ajudou a labuta
sertanista: fotos de satélite indicaram pontos que poderiam representar
uma aldeia. Ele montou uma expedição, tendo Algayer como auxiliar, e foi
conferir uma clareira: era uma pequena aldeia. O contato com os índios
foi pacífico (e registrado por Carelli). Dois irmãos, o garoto Pura e a
menina Txiramantu, caminharam até a equipe, trocando olhares. Os brancos
barbudos foram levados até a aldeia e,
algum tempo depois, apresentados à mãe e a uma prima dos dois irmãos. A
língua falada pelo grupo foi identificada como pertencente ao povo
canoê. Um sobrevivente da transferência organizada pelo SPI em 1952 foi
destacado para servir de intérprete. Alguns meses depois, com a relação
de confiança estabelecida, os canoês guiaram os sertanistas até outro
povo vizinho que vivia, como eles próprios, uma situação de isolamento
voluntário. Eram os akuntsus. O primeiro encontro com os remanescentes
foi coordenado por Algayer e também filmado por Carelli. As cenas que se
seguiram foram dramáticas. Guiados pelos canoê, eles foram direto para a
aldeia e se depararam com Pupak, nessa época com cerca de 40 anos, que
tremia incontroladamente de pânico. Escondida, Ururu foi a segunda a
aparecer, trazida pelo braço, até mesmo com certa violência, pela índia
canoê, a prima dos irmãos Pura e Txiramantu. Ela também estava em pânico
e o resto do
grupo, que somava mais cinco pessoas (as filhas e a mulher do velho
Konibu, líder e xamã do grupo, mais tarde identificado como irmão de
Ururu), só veio a aparecer depois que certa calma estabilizou os ânimos.
Traumatizado com o universo dos homens brancos, o também sobrevivente
Konibu seria o último a se revelar.
"Vai. experimenta que é bom",
incentiva Alemão. O rapé arde o nariz. Konibu coloca mais um punhado na
minha mão. Estamos sentados no pátio da aldeia akuntsu. Meto o dedo no
montinho e trago um punhado ao nariz. Sigo Alemão, concentrado na curta
viagem do rapé. Inalo e acompanho a solidão que a irritação no rosto
provoca. Espirros, lágrimas, seguidos por uma sensação de limpeza. O
xamã Konibu, a meu lado, está concentrado. Olha para mim e ri da minha
inexperiência. Com os olhos ainda irritados, Alemão coloca o dedo nas
costas de Konibu e aponta um buraco. O velho se agita. Demonstra uma
vontade de compartilhar
comigo um sentimento de revolta, e também a expressão triste da
lembrança do que viveu. É marca de tiro. Em pé, Popak se agita, pula,
mexe o corpo. Vira o braço direito para mim e aponta a assinatura que o
chumbo também lhe deixou.
Sinto que sou bem recebido pelos
akuntsus. Eles confiam em Alemão, meu guia, e ficam curiosos para saber
que tipo de branco eu sou. Tenho o corpo todo pintado por jenipapo pela
arte dos índios camaiurás, do Xingu, onde estive uma semana antes. As
mulheres seguem as linhas escuras em minhas costas com a ponta dos
dedos. Surpresas pela descoberta, elas chamam Ururu para ver. Ela
caminha com dificuldade, tem as pernas tortas. Conhecedora da arte da
pintura corporal, se mostra impressionada pelo trabalho. Sua satisfação é
expressa com uma leve mexida no lábio, indicando um singelo sorriso de
aprovação. Logo em seguida, senta-se ao lado de seu fiel escudeiro, um
mutum, e, do outro lado, um companheiro
jacamim - os dois pássaros pretos que ela cria possuem um ar, ao mesmo
tempo, sombrio e tranquilo. Meu primeiro contato com os akuntsus ocorreu
em 2006, dez anos após os contatos iniciais com a Funai. No posto de
fiscalização da Terra Indígena Omerê, localizado entre a aldeia dos
akuntsus e a aldeia menor ainda dos canoês - hoje habitada apenas pelos
irmãos Pura e Txiramantu e um filho dela, Bakwa, os sobreviventes após a
morte da mãe deles, da prima e de outro filho de Txiramantu.
No
ônibus entre Chupinguaia e Corumbiara, duas cidades pouco aprazíveis no
interior do estado, a terra devastada, a fumaça constante e os
esqueletos de castanheiras secas no meio de pastos arrasariam um coração
de pedra. Neste cenário, os remanescentes dos povos akuntsus e canoês
são um híbrido entre heróis da história brasileira e fantasmas de um
mundo que já acabou, mas resiste em sucumbir. O constante pensamento
sobre o fim a que eles estariam
condenados em apenas mais uma geração é aterrorizante. A brutalidade
imposta a seres humanos que pareciam tão alegres, um choque.
Não
se sabe quantos índios morreram no ataque à aldeia akuntsu, já que os
corpos nunca foram encontrados. Konibu acredita que os cadáveres de seu
povo tenham sido comidos, já que para os akuntsus os brancos são
aterrorizadores: verdadeiros canibais sanguinários. Mas, para os
sertanistas, o mais provável é que tenham sido carregados na caçamba de
um caminhão e desovados em alguma represa das fazendas da região, como é
comum por lá. Santos encontrou cinco malocas familiares, o que poderia
representar a existência de até 30 vítimas. Mas é possível que eles já
fossem um grupo reduzido, cerca de uma dúzia. Ou que fossem ainda mais
numerosos. Nunca se saberá. "A comunicação é difícil, e até hoje não foi
feita uma genealogia familiar para se tentar descobrir quantos eram na
época", diz
Vincent Carelli, que passou anos investigando a história, culminando no
documentário Corumbiara, vencedor do festival de Gramado de
2009.
Hoje, fora os brancos que visitam a área, os índios só
entram em contato com pessoas da cidade quando estão com problemas de
saúde. E o último verão amazônico foi fatal para a frágil saúde dos
akuntsus. Uma epidemia desabou sobre a aldeia, e todos eles tiveram
problemas respiratórios. Konibu, o caso mais grave, foi diagnosticado
com tuberculose. A velha Ururu, debilitada com uma infecção pulmonar,
teve de ser internada. Por cerca de um mês, os akuntsus viveram como
nômades entre cidades e hospitais de Rondônia, cada qual em lugares e
momentos diferentes.
Entre 15 de setembro e 6 de outubro, todos
os akuntsus foram hospitalizados com infecções respiratórias. Aramina e
Enontéi, esposa e filha de Konibu, nunca tinham ido para uma cidade e
sofreram enjoos no carro. Todos viram
uma quantidade assustadora de pessoas brancas, como aquelas que haviam
massacrado o seu povo, e não sabiam como reagir tão imersas em
território tido como hostil. Konibu e sua outra filha, Txiaruí, ficaram
em Cacoal, hospitalizados. Ambos os quadros foram agravados por
problemas cardíacos, e a moça teve de submeter-se a uma cirurgia para a
retirada do útero e do ovário esquerdo.
Depois de quase um mês de
internação, Ururu e Pupak voltaram para a terra indígena em 23 de
setembro. Os dois sempre andaram juntos, ele a trata com carinho e
dedicação, ela lhe confere conforto materno e espiritual. Mas Ururu
havia chegado debilitada, desidratada e sem conseguir andar. Estava
apática, magra. Queixava-se de dores. Tinha dificuldade para respirar.
Começava a sucumbir. Após um longo período em Cerejeiras, a mais velha
dos akuntsus decidiu que não poderia morrer longe de sua terra. E
ninguém conseguiu dissuadi-la da
ideia.
Quinta-feira, 24 de setembro de 2009: Ururu
toma os medicamentos às 7h da manhã. Pupak parece disposto; ela está
apática. Só se alimenta com ajuda - e em pequenas quantidades. À tarde,
piora. Começa a queixar-se de dores por todo o corpo. Muita dor de
cabeça, no estômago e na garganta. A enfermeira oferece soro para
hidratá-la. A índia está abatida, triste e desanimada. A pressão
arterial, no fim do dia, é de 90 por 50. Ela recusa o líquido.
Txiramantu atravessou o pasto que os fazendeiros ainda mantêm em suas
terras, e separa a aldeia canoê do posto médico, para visitar Ururu. Ele
faz um belo ritual de cura. Canta, recita mantras, assopra sua áurea
para espantar os maus espíritos. Ururu parece sentir-se aliviada e cai
no sono em sua rede, sem aceitar uma colher sequer do mingau que lhe foi
oferecido.
Sexta-feira, 25: Ururu acorda ainda
menos disposta. Aceita apenas água com mel. Pede
para ficar só. Quer que a deixem em paz no mato ou na beira de um
igarapé próximo. Algayer é prestativo. Arma a rede, leva seus pertences e
a carrega no colo até a beira da água. Oferece um pedaço de banana, que
é recusado. Ele e Pupak levam a brasa do fogo para aquecê-la - ela
nunca deixou apagar a chama. O filho decide ir para a mata colher ervas,
folhas e paus. No posto, os funcionários estão preocupados e tensos.
Pupak retorna com uma série de ingredientes e os raspa sobre as costas
da mãe. Sopra fumaça em seu rosto, como uma forma de purificação. Ururu
passa o dia sem aceitar alimento. Tampouco permite ser hidratada. As
queixas de dor no corpo são frequentes, mesmo medicadas com analgésicos.
Algayer percebe a gravidade da situação e insiste em levá-los a um
médico na cidade. Conversa calmamente com Pupak, que se mostra nervoso.
Cospe no chão e faz gestos para se comunicar: sua mãe adotiva deve ser
tratada onde está, e não
na cidade.
Sábado, 26: O quadro de apatia e dores
generalizadas se mantém. Ururu pede a presença da xamã Txiramantu. Ao
fim de mais um rito, sente-se melhor e sua expressão é tranquila. Aceita
um pouco de soro. A pressão sobe para 110 por 60, ainda dentro de um
quadro normal. O interior da maloca está abafado. O fogo é um
companheiro mesmo quando a temperatura ambiente está alta. Ururu recusa
um caldo de frango com legumes oferecido para o almoço. Se mostra
irritada e retira a soroterapia da veia. Recusa que seja reinserida.
Algayer volta a insistir para que ela seja levada para a cidade. Pupak
agora está mais nervoso com a insistência.
Domingo, 27:
A enferma pede para ser levada novamente para a beira do igarapé. Quer
ficar só, quer que a deixem no mato e a esqueçam. A pressão está estável
em 110 por 60. Recusa soro e comida. Faz gestos para indicar dor no
abdômen. Queixa-se de dor de
cabeça. Algayer insiste para que a índia seja levada para o hospital.
Tenso, Pupak pede que respeite a vontade de Ururu.
Segunda-feira,
28: Desânimo e fraqueza persistem. Ururu recebe um banho de ervas.
Permanece silenciosa na cabana. Bebe um pouco de suco, mas recusa a
soroterapia. Quer fi car só, somente Pupak está a seu lado.
Terça-feira, 29: As dores aumentam pela manhã. A
pressão é de 90 por 50. Ela aceita um gole de soro, mas recusa que seja
colocado em sua veia. Um caldo de frango e fubá é apreciado pelos
presentes, que comem fartamente. Menos Ururu, que nega. Por volta das 3
da tarde ela está próxima ao fogo, abanando e cheirando três folhas de
aspecto rugoso. Aspira fumaça. A cada momento, esquenta uma parte do
corpo. Tosse seguidamente.
Quarta-feira, 30: Constantes
dores no corpo. Ururu bebe um gole de água com mel e alimenta seu
papagaio de
estimação com mamão. Está fraca, e movimenta-se com dificuldade. Está
imóvel. Passa a apresentar tremores. Pupak distribui emplastos com
folhas e raspas de cascas de árvore por todo o corpo da mãe. Ururu já
não ergue a cabeça. Faz sinais de dor. A enfermeira tenta aparar sua
cabeça, ajeita o tórax. Não há posição confortável. Ofegante, Ururu
mostra-se ansiosa e angustiada. Quer ficar só. Silêncio. A morte é
iminente. Os brancos próximos sentem o fatalismo da situação. Escrevem
relatórios por e-mail, falam com Brasília. Pedem ajuda e orientação da
Funai e da Funasa. Solicitam um médico, que já deveria ter chegado. No
ar, um cheiro de desolação.
Em 1º de outubro, o ar estava
seco. O sol, a pino, era forte e cortava a atmosfera azul sem uma nuvem
sequer. A visão das árvores gigantes atrás da pequena maloca estava
distorcida pelo fata morgana. Um silêncio angustiante tomava
conta do ambiente. Alemão,
sentado sob o telhado de palha na varanda do posto da Funai, conferindo
conforto provisório à sua apreensão. Pupak entrou na maloca da mãe e
saiu nervoso, caminhando rápido e mexendo efusivamente o corpo. Entrou
na casa ao lado, onde estavam as outras mulheres da sua tribo. Do lado
de fora, impaciente, Algayer escutou o choro alto, agudo e estridente.
Às 12h15, Ururu, que tinha em torno de 85 anos, tombou a cabeça de lado
tocando o solo. Morreu sentada no chão de terra de sua maloca, ao lado
da rede de fibra de tucum tecida por ela mesma, próxima da fogueira
montada por Algayer.
Respeitando o luto, Algayer se colocou à
disposição para auxiliar Pupak. Mas se limitou a ajudar a cavar a cova. O
resto foi feito pelos índios, que embrulharam o corpo leve nas folhas e
fizeram rezas. Todos choraram muito. O enterro foi rápido, com um fogo
permanecendo aceso sobre a sepultura. Pupak despediu-se de todos e se
isolou em outra aldeia. Mas,
antes de partir, gesticulou para Alemão como se dissesse "novamente meu
mundo acabou, não há mais ninguém". Quando voltou, dias depois, trouxe
consigo os pertences de Ururu, fez uma fogueira dentro da maloca e
deixou o fogo apagar as últimas lembranças materiais da mãe que o
escolheu. "Mesmo se tivesse conseguido levá-la para o hospital, sabia
que não resolveria. O médico ligaria soro, um monte de coisas, e isso
era tudo o que ela não queria", pondera Alemão. "Sabendo o que se passou
na vida desse povo, a gente fica sem poder agir. É muito sofrido. Desde
o início eu os acompanho. Mas ficar fazendo cova é muito triste." O
Brasil praticamente ignorou o acontecido. Na Inglaterra e na França,
alguns jornais, seguindo informações da ONG Survival International,
informaram que um dos últimos índios akuntsus havia morrido. Para que a
notícia ganhasse mais relevância e fosse compreendida por um público
distante da realidade indígena
brasileira, o drama foi traduzido de forma contábil: "Declínio de uma
tribo: restam cinco", titulou o inglês The Independent.
A
certidão de óbito diz: parada cardíaca e respiratória. Mas a verdade é
que Ururu morreu de tristeza. "Tristeza índia", como escreveu um dia
Darcy Ribeiro, contando o fim de Kosó, um índio kaapor, que entrou em
depressão pela morte de seu fi lho, ouviu, então, seu pai falecido
chamá-lo em um sonho e foi encontrar-se com ele. "Deitou-se na rede e,
em vez de dormir, se fez morrer. Este é um talento índio extraordinário,
registrado mais de uma vez", descreveu o antropólogo brasileiro. Como
Kosó, Ururu, sobrevivente do genocídio do seu povo, trancou-se em si
mesma. Até a alma abandonar o frágil corpo. Já que roubaram a vida e a
cultura do seu povo, ao menos a morte ela decidira guardar para si.
Cololaborador desta postagem: Cândido Domingues