Chafariz
do Bonfim, instalado cerca de 1860.
Em
matéria de O ALABAMA, é possível termos uma ideia do cotidiano dos chafarizes de
Salvador no século XIX, um verdadeiro campo negro urbano, parafraseando Flávio
Gomes, que forjou o termo ao se referir a localidade de Iguaçu no século XIX. Os
chafarizes se mantinham como espaço de sociabilidade entre a população escrava,
liberta e livre, que mesmo em momentos de trabalho árduo fazia desse local um ambiente
de resistência e refúgio temporário das amarguras da escravidão.
A BUSCA
D’ÁGUA NOS CHAFARIZES
- Ora,
não se dá coisa assim!... forte desaforo! Pois estas negrinhas não deixaram a
casa ficar sem água?
Gritava
raivosa D. Quitéria, indo ver os potes e achando-os vazios. Contudo, suas duas
negras, há boas duas horas, foram ao chafariz, que é bem perto de casa. Que
diabo fazem elas no chafariz, há tanto tempo.
A busca
d’água nos chafarizes, para negras que vivem empregadas no serviço de casa, é
uma felicidade, que elas apreciam em extremo, e por isso, quanto mais ali se
demoram, ainda que em chegando em casa levem pelas ventas algum bofetão da
senhora.
Os
chafarizes são para as pretas cativas os rendez-vous de seus amores, o lugar
onde desabafam as raivas dos senhores e senhoras; a sala de visita onde recebem
as amigas, o escritório onde pagam suas dívidas de ciúmes e tratam em magna
sociedade das ações, que veem praticar em casa. Negros e negras, de bons e maus
senhores, ali se encontram, e grandes coisas se decidem, enquanto corre a água
da bica com doce e suave murmúrio.
Não é
pois raro ver muitas vezes, em um mesmo chafariz, uma negra que se derrete para
o seu Adonis cor de carvão, e lhe dá desculpa de não ter vindo na véspera ao
chafariz, porque foi com sua senhora passar o dia numa casa; outra que briga,
profere palavras e rasga a companheira, porque lhe empurrou o barril para fora
da bica; uma que enche o pote chorando e rogando pragas ao senhor, que lhe deu
uma esfrega de respeito; outra, finalmente, que, em companhia das amigas, como
se ninguém a esperasse em casa, como se ali só tivesse vindo para palestrar,
relata os namoros da yayasinha, as cabeleiras de seu senhor e as fugidas que
faz o sinhozinho de casa, à noite, sem que ninguém saiba, para ir dormir fora,
julgando todos de casa dormir ele e seu quarto bem sossegado. São cenas estas
todas próprias de um chafariz, e que fazem, por consequência, com que não
voltem as negrinhas de D. Quitéria.
Chafariz
do Largo do Accioli, instalado cerca de 1858.
Essas
negrinhas tinham ido ao Terreiro, e lá estavam demoradas, querendo dar a sua
senhora os privilégios de papagaio, por isso que a deixaram se água em casa.
- Não
sabe V., tia Violante, dizia uma delas no chafariz, o que aconteceu em casa?
- Que
foi?
-
Sinhazinha tanto andou, até que achou.
- Que foi
que ela achou?
- Ora,
gentes, V. não sabe o que foi não? Foi na chuva e molhou-se.
- Está
bom! Nunca ninguém me disse isto!
- Pois
bem! Achou, e meu senhor ainda não sabe de nada. Eu ouvi minha senhora estar
dizendo que sinhazinha há de casar. Si yoyô Cazuza não quiser, que ela então
conta a meu senhor.
- Que
está me dizendo! Germana, V. tome sentido. Olhe, negócio de branco é negócio
fino. Toma sentido, negrinha.
- Deixe
estar, tia Violante, eu que me importa? Coisa de branco é coisa de branco.
- Tia
Nicacia, adeus, dizia a outra, minha senhora está bem zangada. Vm. não leva
roupa nem nada. Meu senhor já brigou.
-
Negrinha, vá embora, V. não sabe que está dizendo.
Está bom,
que me importa!
E ambas,
depois de haverem pauteado bem, lá vem com o pote na cabeça, pelas Portas do
Carmo, bem a seu gosto, e no caminho se derretendo com os tios, que foram ao
chafariz também encherem seus barris, e antes de chegarem à casa ainda fazem
meia dúzia de paradas e contam meia dúzia de histórias, até que chegam e se
desculpam dizendo que havia muita gente no chafariz; que as bicas estavam
ocupadas e que os galés tomaram conta delas; e outras carcavias semelhantes,
que uma pobre dona de casa não tem remédio se não aturar.
A busca
d’água nos chafarizes é uma coisa agradável para as negrinhas de casa, e dá não
poucos cuidados a certos donos de casa, que parecem não dormirem para fazer
sair os negros para a fonte, logo as quatro horas da madrugada, o que para os
negros é bem duro, porque faz frio; e dizia a velha Monica, velha que podia ser
citada como um compendio de ditados, que, se os pretos soubessem que no céu
fazia frio, nenhum queria ir pra lá.
É raro
também, encontrar uma negra que indo ao chafariz não vá cantando. Parece que
buscam nas cantigas de seu país, se não africanas, alívio para as fadigas do
trabalho, pois é de supor que sintam este carregar de água todos os dias para
os dois e três banhos, que toma sua senhora e a lavagem da roupa de casa. Quem
morar em caminho de chafariz ouvirá muita vez, estragadas, estropiadas, e
horrivelmente desfiguradas, as belas e sentimentais modinhas, postas na boca
das crioulas do país. Escutando-as a sinhá moça, quando as canta no seu piano,
dir-se-ia, que buscam o caminho do chafariz, onde ao menos são livres para
ensaiá-las e cantá-las, conforme mais ou menos lhes ficou em memória.
Há alguém
que muito aprecia a busca d’água, ou necessidade que tem os senhores de beber e
lavarem-se, e este alguém, é a turba magna de capadócios, que se ajuntam nas fontes
para fazer as suas conquistas. Esses heróis da boa vida, da vida sem cuidados e
para que tudo está bem, vão ao chafariz, para se divertirem, como vai um moço
de educação ao teatro para ver a sua namora, ou como passa um amável pela rua
de seu bem, para rasgar-lhe uma cortejo. No chafariz pauteiam, dão risadas e
fazem muita coisa mais que fica e silêncio.
- Oh! O
buscar água no chafariz é uma felicidade para as negrinhas de D. Quitéria!
Fonte: O
ALABAMA – 12 de setembro de 1868.