P.V : Uma vez, quando eu era ainda bem jovem, pensei
me tornar budista. Estava no sudeste da Ásia, via aqueles monges todos que só
tinham uma peça de roupa, uma túnica cor de laranja, uma cuia para comer e
beber, um rosário para contar os mantras e as orações. Era a idéia do
despojamento total o que mais me atraía.
A renúncia aos bens do mundo
pode esconder uma fuga, uma dificuldade em aceitar e assumir as
responsabilidades e os grilhões do mundo e se adaptar a eles.
P.V : Sem
dúvida. Nada mais dificil, quando se procura um caminho, que descobrir se a
força que nos empurra vem do desejo de fugir ou do desejo de buscar. Talvez, em
algum nível bem profundo, nem haja qualquer diferença entre esses desejos. No
sentido de que existe uma força inexorável e constante que do nascimento à
morte nos impele à frente, em direção à descoberta de nós mesmos. Talvez fosse
até melhor dizer : em direção à construção de nós mesmos. Tudo que nos
acontece, todos os fatos com sentido ou aparentemente sem sentidos nas nossas
vidas, talvez não sejam mais do que ferramentas, recursos, estratégias de que
aquela força lança mão para nos empurrar na direção daquela descoberta. Talvez,
tanto o desejo de fugir quanto o de buscar sejam duas dessas ferramentas,
igualmente importantes. Como disse, naquele nível profundo, talvez haja pouca
ou nenhuma diferença entre elas.
Hoje
você completa 93 anos, a maior parte deles consagrada ao estudo teórico e prático
do candomblé. A parte o interesse cultural, o que todo esse
aprendizado significa para você em termos espirituais ?
P.V : Em termos espirituais ? Nada. Não acredito
em nada disso. Sou homem de pouca
crença. Por natureza pessoal, e também por condicionamento cultural, busco
muito mais ser um homem de conhecimento.
Nada ? Você foi consagrado
babalaô, entregou sua cabeça a Xangô, sem acreditar em nada disso ?
P.V : Pela manhã, antes de vir me visitar, você não
disse que foi ao Pelourinho e comeu um acarajé feito por aquela baiana que
monta seu tabuleiro no lado da Fundação Jorge Amado ?
Pois bem, aquela mesma baiana, igual a tantas outras, vestida de baiana
e coberta de balangandãs, que passa o dia fritando acarajé para ganhar a vida,
você sabe o que acontece à noite, quando ela vai para o seu terreiro, quando
ela dança e entra em transe ao som dos atabaques e incorpora a Oxum que ela
carrega ? Preste atenção : ela deixa de ser uma simples baiana, igual
a milhares de outras, para se transformar naquilo que ela realmente é – uma
rainha. Uma rainha, sim, na profundidade do seu ser. Respeitada, tida e havia como tal por toda a
comunidade do seu terreiro. E aquele
estivador que passa o dia carregando sacos no cais do porto, sabe o que
acontece quando ele incorpora no terreiro o Xangô que ele carrega ? Acontece o mesmo : ele se transforma num rei,
porque a sua verdadeira natureza é a de um rei. Você me perguntou, eu
respondo : foi para isso, sim, que dediquei a maior parte da minha vida.
Para contemplar e tentar entender esse espetáculo único, o maior espetáculo da
Terra, que é a manifestação plena da verdade que habita a pessoa humana. A
verdade profunda que é representada pelo orixá. E, se mais dez vidas eu
tivesse, de bom grado dedicaria todas elas a esse mesmo objetivo.