No Dia do Historiador, pesquisadora
da RHBN faz uma reflexão sobre alguns valores atribuídos à profissão e
questiona o significado da instituição de uma efeméride dedicada a ela.
Nashla Dahas
18/8/2012
A que postura ideal somos
convidados a ter no Dia Nacional do Historiador? Há algo de irônico nisso, algo
de silencioso, de castrado, algo de museu. A necessidade de instituir um marco
também para a categoria profissional da história parece embebida do espírito
destes tempos, em que através da memória oficial encontramos a legitimidade de
nossos papéis sociais e podemos continuar quietos, satisfeitos de nossa
condição. Neste quadro, coube ao historiador a ilusão de precisar a direção do
tempo, que fluiria do passado para o futuro, afeito à variedade classificada,
protegida dos horrores da desorientação, da incerteza, das ambigüidades e
ironias que desde sempre constituem o tempo.
Talvez seja necessário retirar
da história parte do peso de carregar um passado coerente e preciso, fundamento
mais seguro das identidades. Equivaleria a distribuir as chaves para um
universo que não precisa acabar, no qual o homem é destituído de uma posição de
domínio, de um modo de ser determinado por conjuntos de variáveis mais ou menos
previsíveis, pois que alicerçadas em colonizadas relações de unidade e
identidade.
Há mais de 500 anos um enorme
contingente de pessoas caminha entre o mito do paraíso perdido e as descobertas
mais fantásticas no campo das ciências e tecnologia, da economia mundial, e da
comunicação extravagantemente massiva. A vida tem sido tecida por múltiplos
processos sociais que garantem a manutenção dessas condições, aspiração e profundo
desejo de um futuro desenvolvido e eternamente mais moderno. E neste amplo arco
de um conceito um tanto oportunista de “modernidade” consideramos os
encurtamentos geográficos e as aproximações étnicas, a estigmatização dos
conflitos de classe, raça e nacionalidade, religião e ideologia, na esperança
de alcançar o comando da própria história.
Reconhecimento
Da aventura do descobrimento
humano nos séculos XV e XVI, a inelutável sociedade “global” contemporânea, o
problema do reconhecimento e da demarcação das identidades culturais
combinou-se a um desejo de modernização social e desenvolvimento econômico a-históricos,
pois que diluídos em fragmentários caminhos distantes de qualquer referência de
transformação que marcou esses séculos de experiências. A linha reta do passado
institucionalizado chamou de civilização a exclusão política, e de tolerância
cultural, o racismo das opções modernas de inclusão.
O Ocidente tornou-se o lugar
por excelência da liberdade, desde que as diferenças identitárias estejam
devidamente elencadas e asseguradas pela lei – cujo argumento fundamental tem
sido repetidamente a História. Ao mesmo tempo, do espírito moderno de ruptura
que marcou finais do século XIX, não cultivamos atualmente qualquer referência,
profundidade ou sentido e começamos a nos chamar de pós-modernos, decretando o
fim daquela história, novamente, como se isso fosse possível. Formatamos o
inconsciente individual e o acaso histórico, o desejo pessoal de mudança e a
democracia participativa em um capítulo da história em direção a uma infinidade
de novas, atraentes e perturbadoras experiências e memórias incapazes, contudo,
de nos municiar da compreensão de quem somos e qual o nosso lugar.
No Brasil, ora discutimos no
campo político a verdade unívoca de capítulos de nossa história, comemoramos de
forma perturbadora a chegada do futuro sem demonstrar qualquer empatia pelas já
antigas lutas de classe, lutas sociais, conflitos e contradições psicológicas
que constituíram gerações tragadas por um passado de datas e monumentos, mas
sem qualquer conexão com a imagem futurista de nosso presente. O modelo ideal
de sociedade responsabiliza a agitação social e suas incertezas por um fracasso
determinista confinado às histórias contadas nas salas de aula, às bibliotecas
universitárias, aos museus e patrimônios culturais, distantes, portanto, da
ampla sensibilidade social, das ruas, do espaço público e da memória, na qual
todos os sentimentos humanos de senso de pertencimento, compreensão e
atividade, sexualidade e desejos podem ser inventados e reinventados todos os
dias de acordo com as necessidades e interesses pessoais.
Diante disso, talvez a
ambigüidade do conhecimento histórico, a consciência da incerteza do progresso,
do acaso e do devir devam ser postas em causa. Deixemos por um momento a
homenagem mais problematizadora do estudo do passado, para abrir mais espaço ao
erro e a ilusão, obscurecidos pelo desejo colonial de modernidade. Que as
oportunidades de mobilidade e transformação moral desde muito sonhadas, assim
como a incansável busca de crescimento econômico e humano não lancem nossa
secularidade a categorias cristalizadas em datas e acontecimentos. Mas que o
dia de hoje seja mais uma chance de reflexão sobre nossos vínculos emocionais
com uma imensa trajetória de lutas, diversidade e possibilidades de vida, de
valores, de alternativas de futuro.