O jogo da dissimulação — Abolição e cidadania negra no Brasil, de Wlamyra R. De Albuquerque. Prefácio de Maria Clementina Pereira da Cunha Editora Companhia das Letras, 320 páginas. R$ 52
Maria Helena Pereira Toledo Machado
O livro de Wlamyra de Albuquerque, “O jogo da dissimulação”, inserese em amplo debate que tem tomado corpo na historiografia social da escravidão e do pós-Abolição no Brasil das últimas décadas. Isso porque, após longo silêncio a respeito dos processos de abolição que tiveram lugar em diferentes contextos regionais e escravistas brasileiros, o tema parece ter voltado à pauta.
O silêncio se justificava pela ideia, compartilhada por movimentos sociais e por certos setores intelectuais, de que a penada da princesa havia sido uma manipulação política, representando o contrário do que dizia. O processo de descarte da Abolição como fato relevante da História dos movimentos sociais afro-descendentes aparecia como resposta a uma apropriação desse movimento por setores conservadores.
Dizia-se que a Abolição refletia interesses das elites humanitáriopaternalistas e de seus seguidores das camadas médias urbanas, que buscavam consolidar uma visão de civilização que excluía qualquer possibilidade de integração dos afro-descendentes ao processo civilizatório. É implicitamente contestando essas visões, ainda hoje repetidas por uma historiografia que, embora se apresente com nova roupagem, se mantém conservadora em sua formulação, que Wlamyra, em “O jogo da dissimulação”, retoma discussões cruciais que antecederam e sucederam ao 13 de Maio.
Tendo como foco a Bahia, o livro de Wlamyra foi redigido em torno de quatro casos, ou, como ela ressalta, em torno de quatro episódios, que surgem como janelas que convidam o leitor a se debruçar sobre diferentes momentos e problemas que marcaram o tortuoso processo de declínio da escravidão, assim como o processo de ressignificação da liberdade que o acompanhou.
O contexto baiano, com sua História de convivência com vasta população africana, aparece aqui como tema recorrente, a imprimir a especificidade do processo de abolição local.
A moldura historiográfica montada por Wlamyra escora-se em pesquisa inédita de fontes e numa bibliografia bastante atual, que a permite trafegar pelas décadas imediatamente anteriores e posteriores à Abolição, período marcado pela Lei do Ventre Livre de 1871 e o advento da República, em 1889, com riqueza de detalhes.
Como afirma a autora, a questão da crise da escravidão no Brasil encontra sua referência mais na discussão do domínio do que propriamente na eternização da escravidão, já em si ideologicamente desacreditada desde a década de 1870, amparando-se apenas no argumento da necessidade imediata das lavouras para atravessar as inúmeras crises, além da crescente oposição dos próprios escravos.
Já o ponto final de “O jogo da dissimulação” é a república higienizadora e civilizatória, capaz de propor uma nova abordagem das liberdades e direitos civis dos afro-descendentes, agora emoldurados não pela questão jurídica da propriedade, mas sim por discursos e práticas sociais, aberta ou sub-repticiamente, racializados. O objetivo principal de Wlamyra é mostrar a articulação do processo de extinção da escravidão com a emergência de um novo paradigma social, o qual ressignificou os conceitos de liberdade e de gozo de cidadania através de discursos racializados, que justificaram a criação de barreiras para a inclusão dos libertos, dos “13 de maio” e, em geral, dos homens livres despossuídos.
Certamente a tese de Wlamyra é muito bem-vinda: em termos historiográficos estamos ainda engatinhando na compreensão dos efeitos dos discursos raciais e racializados sobre nossas práticas sociais. A autora sublinha o caráter marcante das teorias de hibridação, poligenia e darwinismo social como instrumentos utilizados pelas elites senhoriais, pelos políticos, por médicos e outros bem pensantes para recolocar o problema da liberdade dos afro-descendentes em moldes confortáveis à eternização de relações de subserviência e domínio.
Embora o leitor atento fique por vezes frustrado com a ausência de uma melhor contextualização das ideias racialistas então em voga, o livro evita dois problemas que afligem os estudos do tema em nosso ambiente historiográfico: um primeiro, o de tomar essas teorias como um corpo de verdades bem estabelecidas quando, na realidade, eram essas interpretadas na prática social de maneira bastante aberta e ambivalente.
Embora o leitor atento fique por vezes frustrado com a ausência de uma melhor contextualização das ideias racialistas então em voga, o livro evita dois problemas que afligem os estudos do tema em nosso ambiente historiográfico: um primeiro, o de tomar essas teorias como um corpo de verdades bem estabelecidas quando, na realidade, eram essas interpretadas na prática social de maneira bastante aberta e ambivalente.
Assim, se alguns “homens de ciência” articularam corpos teóricos relativamente coerentes, a prática das teorias raciais mostra, como bem sublinhou Martha Hodes em seu artigo sobre conceitos de raça em voga nos EUA e no Caribe da era da Guerra Civil — “The mercurial nature and abiding power of race: A transnational family story” (“The American Historical Review”, 2003), que a grande força do conceito de raça deriva exatamente de seu caráter ao mesmo tempo fluido e classificatório.
Um segundo aspecto referese ao problema da recepção das teorias racialistas, conceito já superado por uma historiografia crítica de uma posição colonial. Como já mostraram os teóricos sociais, os conhecimentos são produzidos em instâncias dialógicas, sendo a recepção apenas um dos aspectos da questão, que, se tomada por si só, empobrece nossa percepção da riqueza das engrenagens sociais investidas na produção do conhecimento nas áreas coloniais e pós-coloniais. Mais ainda se justifica este cuidado quando se verifica que o Brasil foi espaço privilegiado de produção dessas mesmas teorias, portanto, estando longe de ser um mero receptor das mesmas.
Por todas essas razões, o livro de Wlamyra pode ser lido com prazer e debatido com vigor, contribuindo para o aprofundamento de nossos conhecimentos sobre a Abolição.
MARIA HELENA PEREIRA TOLEDO MACHADO é professora livre-docente do departamento de História da USP e autora de “O plano e o pânico — Os movimentos sociais na década da Abolição” e “Brazil through the eyes of William James”, entre outros
O Globo, 11 jul. 2009. Suplemento Prosa & Verso.
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Colaborador desta postagem: João José Reis
MARIA HELENA PEREIRA TOLEDO MACHADO é professora livre-docente do departamento de História da USP e autora de “O plano e o pânico — Os movimentos sociais na década da Abolição” e “Brazil through the eyes of William James”, entre outros
O Globo, 11 jul. 2009. Suplemento Prosa & Verso.
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Colaborador desta postagem: João José Reis