João
José Reis, referência mundial no estudo da escravidão no Brasil - Guito Moreto
/ Agência O Globo.
João
José Reis: ‘Poder público e setor privado têm dívida com a escravidão’
Historiador
baiano, que recebe hoje Prêmio Machado de Assis, considera ‘tímidas’ as
iniciativas pela preservação da memória da herança africana.
POR
BOLÍVAR TORRES
RIO -
Nesta tarde, a partir das 17h, o baiano João José Reis, referência mundial para
o estudo da história da escravidão no século XIX, professor da Universidade
Federal da Bahia e Doutor pela Universidade de Minnesota, recebe o Prêmio
Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, uma das principais honrarias
do país, em cerimônia no Salão Nobre do Petit Trianon. A recompensa ao autor de
livros como “Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês”
(Companhia das Letras) acontece em um momento especialmente turbulento nas
discussões em torno da memória da escravidão.
Localizado
na Zona Portuária e recém-reconhecido pela Unesco como Patrimônio Histórico da
Humanidade, o Cais do Valongo, cujas ruínas compõem os únicos vestígios
materiais de desembarque de africanos escravizados nas Américas, chama a
atenção pelo abandono e pela deterioração. Ao mesmo tempo em que os planos da
construção de um museu da escravidão no local dividem ativistas, outro ícone da
preservação da memória da região, o Instituto Pretos Novos, reclama da falta de
recursos e ameaça fechar.
O
historiador, que também é convidado da próxima Flip (participa no sábado, dia
29, às 12h, de uma mesa com a escritora Ana Miranda), conversou com O GLOBO por
e-mail.
A
história da escravidão é hoje um dos assuntos mais estudados da historiografia
brasileira. Isso tem levado a um melhor entendimento das desigualdades
contemporâneas?
Isso
merecia uma pesquisa à parte. Não é somente a historiografia que tem tratado da
escravidão com muita intensidade nos últimos anos. Além da produção acadêmica,
e muitas vezes por ela informada, hoje se fala muito sobre o assunto, em
filmes, minisséries, novelas etc. Isso deveria criar um elo positivo entre
História e atualidade, resultando numa visão crítica e mesmo no declínio tanto
do racismo episódico dos ataques pessoais quanto do racismo estrutural das
desigualdades. Não vejo acontecer. Talvez seja preciso ainda mais informação,
ao lado de mais políticas públicas, além das cotas raciais nas universidades e
em setores do serviço público.
Houve
alguma iniciativa pública positiva nos últimos anos?
Uma boa
medida recentemente terminada pelo governo federal foi a obrigatoriedade do
estudo da história e da cultura afro-brasileiras. Poderia ter se tornado um
poderoso antídoto ao racismo, pelo esclarecimento de crianças e jovens em
formação, e não apenas focando o passado escravista, mas no presente da
discriminação. Nunca esse tipo de informação foi mais necessária, porque a
internet e as redes sociais, pelo anonimato que possibilitam, incentivam os
racistas de plantão a saírem do armário.
Recentemente,
um restaurante chamado Senzala foi vandalizado por manifestantes em São Paulo.
Como vê a utilização de palavras como “senzala” e “casa grande” para batizar
restaurantes, condomínios e motéis pelo país?
Indica
a desinformação que leva à naturalização do racismo através da manipulação de
elementos da História. Os militantes negros e antirracistas estão certos em ver
isso como um escárnio. Daqui a pouco teremos boate chamada tumbeiro, se é que
isso já não existe. Se quem bota esses nomes em seus negócios não aprender do
que se trata, é preciso ir à porta dos estabelecimentos protestar e perturbar a
clientela, que também devia saber por onde anda. Isso também é método de
educar.
O
senhor defende a construção de um museu da escravidão no Pelourinho. A proposta
de um museu semelhante no Rio vem sendo criticada. Muitos preferem um museu da
herança africana, por exemplo...
Um
museu da escravidão trataria da herança africana se for concebido sob
inspiração da produção historiográfica recente. Os historiadores têm estudado
aspectos essenciais da vida dos escravos com um olho na cultura trazida pelos
africanos, no que diz respeito à família, a resistência cotidiana, a revolta e
a formação de quilombos, a religiosidade etc. Por outro lado, um museu da
herança africana terá que tratar de como os aportes culturais africanos se
transformaram no Brasil escravista. Então não importa qual nome será dado a um
museu que contemple, vamos dizer, a história do negro no Brasil em suas várias
dimensões. Seu sucesso como instrumento de formação e transformação vai
depender de como será concebido. Ultimamente penso mesmo que um museu da história
afro-brasileira ou um museu da história do negro pudesse ser ainda mais
interessante.
Algum
outro museu poderia servir de referência?
O
monumental museu recentemente inaugurado em Washington, nos EUA. Um museu dessa
espécie no Brasil representaria superar a impressão de que a história do negro
que interessa encerra com a escravidão e que a herança africana é a única forma
cultural de expressão dos negros. Um museu dessa espécie seria uma oportunidade
para esclarecer o visitante sobre as desigualdades raciais, a discriminação
sutil e o racismo explícito, a repressão social e cultural no período
pósabolição, e ao mesmo evidenciar a vida cotidiana dos trabalhadores negros e
a formação de suas comunidades e manifestações culturais no campo e na cidade,
suas organizações identitárias e políticas. Um museu que não represente o negro
apenas como vítima, mas como pessoa inteira e complexa, que reage, luta,
conquista espaços na sociedade. O Museu Afro Brasil em São Paulo, aliás, já faz
muito disso.
Como vê
o Cais do Valongo ser eleito Patrimônio da Humanidade pela Unesco ao mesmo
tempo em que um dos poucos espaços dedicados à memória da escravidão no local,
o Instituto Pretos Novos, corre o risco de fechar?
Conheço
o Instituto dos Pretos Novos e o Cais do Valongo. Acho ambos tímidos para
representar a magnitude do mal representado pelo tráfico de escravos, ainda
mais considerando que o Rio foi o porto negreiro nas Américas onde mais
desembarcaram cativos africanos. O reconhecimento do Valongo deveria servir de
incentivo para a construção de algo mais significativo nos arredores, talvez o
museu que antes discutimos. É uma dívida do poder público e mesmo do setor
privado, pois muitas fortunas no Brasil devem sua origem ao dinheiro ganho com
o tráfico e a escravidão. Aliás, essa é uma pesquisa específica a ser feita.
A
escravidão no Brasil foi democrática, já que negros e pardos podiam ser donos
de escravos. Uma de suas descobertas curiosas é que houve também escravos donos
de escravos. Como isso era possível?
Embora existisse
no meio rural, na Bahia, em Pernambuco (onde existem estudos específicos de
outros pesquisadores), no Rio de Janeiro etc, o fenômeno era mais comum na
cidade. Minha pesquisa por enquanto se limita a Salvador. Aqui, a posse de
escravo por outro escravo estava ligada ao sistema de ganho, no qual o
ganhador, ou a ganhadeira, saía às ruas em busca de trabalho remunerado e o
resultado era dividido com o senhor, que naturalmente ficava com a maior parte.
Muitos ganhavam o suficiente para poupar e, depois de alguns anos, usavam essa
poupança para comprar bens, inclusive escravos, ou se alforriar; às vezes fazer
as duas coisas. Acontecia amiúde o escravo usar seu escravo para comprar a
alforria. O sistema funcionava como uma forma de controle senhorial, pois se o
direito costumeiro permitia tais arranjos, caso o escravo saísse da linha o
senhor podia a qualquer hora revindicar, segundo o direito positivo, tudo que
pertencesse ao escravo. Ressalve-se, no entanto, que no conjunto da população
escrava, a possibilidade a compra de um escravo ou da alforria não era
generalizada. Na sua grande maioria os escravos morriam escravos sem escravos.
Hoje,
mais de 60 % dos presos no Brasil são negros. A OAB chegou a comparar as
prisões atuais com as senzalas, no sentido de que a política de encarceramento
atual remete às condições vividas pelos negros na época da escravidão. Concorda
com essa comparação?
Eu acho
que, na média, as prisões brasileiras são piores do que foram, na média, as
senzalas. Pense bem, os escravos eram propriedade, tinham valor monetário,
precisavam ser preservados. Os presos pobres são descartáveis, essa é a
impressão que fica. Não falo dos presos brancos de colarinho branco, que são
alojados em celas especiais. Aliás, você conhece quantos pretos de colarinho
branco presos? Tem algum nos cárceres da Lava Jato? Eis mais um índice, embora
enviesado, da desigualdade racial no Brasil.
ACESSE A FONTE: O GLOBO