João
José Reis
Sou
grato aos membros desta Academia por considerar minha obra merecedora do Prêmio
Machado de Assis. Sendo um historiador da escravidão (embora não apenas)
permitam-me imaginar a concessão do prêmio, quando a Academia cumpre 120 anos,
como uma homenagem àqueles dentre os seus fundadores que, entre outros,
militaram contra a escravidão -- penso em Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, José do
Patrocínio e, muito especialmente, Machado de Assis, que dá seu nome a este
laurel. Neto de escravos, Machado, além de abolicionista arguto, radical,
embora discreto, foi a seu modo historiador da escravidão, no que acompanho um
de seus mais destacados intérpretes, Sidney Chalhoub, também historiador da
escravidão.
Outro
historiador, o acadêmico Alberto da Costa e Silva, aqui presente, avaliou
perfeita e concisamente o peso desse sistema de trabalho e modo de vida para o
Brasil: "A escravidão foi o processo mais importante e profundo de nossa
história." Não podia ser diferente: durou perto de 400 anos, contra apenas
129 anos de liberdade; o tráfico transatlântico luso-brasileiro importou quase
metade dos 11 milhões de suas vítimas; e o Brasil foi o último país das
Américas a abolir a escravidão. Ela
deixou marcas indeléveis na sociedade que nasceu de seus fundamentos e ainda
nos assombra com fantasmas de várias espécies – as desigualdades sociais e
raciais, o racismo sistêmico, o racismo episódico, agora mais assanhado pelo
anonimato da internet (já chamado "racismo virtual"), hoje o
principal veiculo de pregação de todos os ódios, inclusive do ódio racial.
O
Brasil precisará de esforço hercúleo para livrar-se desse passado que se recusa
a passar. O principal caminho talvez seja mais informação, mais educação e
ações afirmativas, umas entrelaçadas com as demais. Neste sentido, algumas
medidas reivindicadas pelos movimentos negros foram adotadas nas últimas
décadas. Entre elas, destacaria três: as cotas educacionais, o ensino da
história afro-brasileira e a criação da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
As
cotas sociorraciais para ingresso nas universidades públicas já resultaram em
mudança na cor dessas instituições, corrigindo em muitos casos a quase
exclusividade branca nos cursos de maior prestígio – Medicina, Direito,
Engenharia. Apesar de problemas aqui e ali, as cotas estão dando certo.
A
introdução, no ensino fundamental e médio, de disciplina voltada para a
história e a cultura afro-brasileiras, com ênfase na história da África,
prometia uma equiparação a conteúdos sobre a história da Europa.
Lamentavelmente, a disciplina desapareceu da nova Base Nacional Comum
Curricular. E a África voltou a ser emparedada naquela acepção, denunciada por
Cruz e Souza, de "África grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa
de gemidos, África dos suplícios e das maldições eternas", enfim, a África
que predomina na grande mídia, refém de uma "história única", na
expressão certeira da escritora nigeriana Chimamanda Adichie. Torço pelo
retorno da África às escolas.
Uma
história de outras vozes está representada na Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – a UNILAB, implantada a partir de
2011 como um gesto, ainda que acanhado, de solidariedade com um continente
pilhado pelo tráfico luso-brasileiro de cativos. Essa instituição acolhe em
suas salas de aula quase mil alunos africanos, mediadores qualificados de suas
Áfricas com o Brasil, jovens que recebem pequena bolsa mensal de 530 reais.
Pois a comunidade da UNILAB esteve ameaçada recentemente com o corte desse
minúsculo item do orçamento nacional. Urge defender a UNILAB!
Políticas
de inclusão racial, além do esforço para educar e informar todos os brasileiros
sobre a imensa contribuição dos africanos e seus descendentes para a formação
histórica e cultural do país, são, entre outras, medidas necessárias – não sei
se suficientes – no combate ao legado nefasto da escravidão. Prefiro acreditar
que seja produto da ignorância, e não desfaçatez, gestos de delinquência
simbólica como batizar um restaurante chique de Senzala. Desejo, desejamos um
país onde não seja preciso uma jovem negra empunhar, numa recente manifestação
de rua, cartaz que dizia: "A casa-grande surta quando a senzala aprende a
ler."
Invocar
a escravidão passou à ordem do dia. Com uma maioria de detentos negros (cerca
de 60%) amontoados em espaço exíguo, nossas prisões são comparadas a senzalas
onde não é servida a boa comida do restaurante Senzala. Comparação talvez
injusta, porque a vida de seus escravos valia mais para o senhor do que parece
valer a vida dos presos para os governos e a sociedade que, conivente, se cala.
Preso não conta como cidadão, ele é preto, ou, se branco, é também preto de tão
pobre – já acusou Caetano Veloso. A precariedade da cidadania, filha da
desigualdade social e racial, tem sido vinculada ao passado escravista com
insistência. Ainda na semana passada, Milton Hatoum escreveu em sua coluna de O
Globo: "Quase quatro séculos de escravidão, e mais de um século de uma
democracia manca, interrompida por várias ditaduras, só poderiam gerar uma sociedade
extremamente desigual."
Há, no
entanto, outra dimensão inquietante nessa ordem de questões, que é quando, em
vez de alegoria, a escravidão se insinua como dado de realidade efetiva ou em
construção.
Como no
passado, o ciclo começa com o tráfico – de trabalhadoras e trabalhadores
sexuais, domésticos, industriais ou rurais. Imigrantes legais e ilegais são com
frequência resgatados de porões insalubres nas grandes cidades, onde trabalham,
moram e morrem. Na zona rural chovem denúncias de pessoas submetidas a trabalho
(forçado, exaustivo, degradante) análogo à escravidão, matéria que hoje
mobiliza pesquisadores e membros da Justiça do Trabalho numa discussão que já
ganhou foro internacional.
A
recentíssima reforma trabalhista causa temor a quem entende do assunto. Segundo
o auditor fiscal do trabalho Luís Alexandre farias, “as mudanças criam
condições legais e permitem que a legislação banalize aquelas condições que
identificamos como trabalho análogo ao escravo”. E a respeito do princípio do
negociado sobre o legislado, o procurador do MPT Maurício Ferreira Brito, que
encabeça a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, advertiu
sobre o perigo da escravidão voluntária: "A depender do que se
negocie", ele alertou, "você pode legalizar práticas do trabalho
escravo." Seria uma graça que este procurador fosse tão ouvido quanto os
de Curitiba. Faltou falar da licença agora dada ao capital para empregar a
mulher gestante em ambientes insalubres. Não me convencem as ressalvas da lei:
se isso não é trabalho degradante, o que mais será?
Sobre a
reforma trabalhista, aceitem um exercício de imaginação pessimista. Não resisto
a comparar o "trabalho intermitente" ali contemplado com o sistema de
ganho ou de aluguel nas cidades escravistas: no primeiro caso, o senhor mandava
o escravo à rua para alugar ele próprio sua força de trabalho; no segundo, o
senhor escolhia um locatário. Circulava o escravo ao ganho ou de aluguel entre
um e outro e mais outro empregador, como cumprirá fazê-lo o trabalhador
intermitente do novo Brasil. Um professor, por exemplo, poderá, como autônomo
intermitente servir em vários estabelecimentos de ensino, um dia num, no dia
seguinte mais um, depois ainda outro. Nascerá, assim, o professor ao ganho.
Some-se
a recente Lei da Terceirização e alcançamos o quadro quase completo de
precarização radical do trabalho. A terceirização agora vale para atividades
fins. Ainda no setor do ensino, empresas que antes limitavam-se a fornecer
empregados para atuar na segurança ou na limpeza, poderão doravante oferecer
professores a escolas, faculdades e universidades, e fazê-los circular de
acordo com a demanda do mercado. Nascerá, então, o professor de aluguel.
Por
felicidade, já passou meu tempo de ser professor ao ganho ou de aluguel. O
emprego em regime de dedicação exclusiva na Universidade Federal da Bahia
deu-me a oportunidade de ser um professor pesquisador. À minha universidade e
aos órgãos de fomento de pesquisa, em especial ao CNPQ, eu agradeço ter podido
escrever a obra historiográfica agora premiada. Dela já falou, com
generosidade, o professor José Murilo de Carvalho.
Queria
apenas acrescentar que meus livros, artigos, capítulos em coletâneas etc, foram
e continuam a ser escritos com paixão pelos temas de que tratam, sem o selo de
garantia da objetividade perfeita exigida pelo positivista. Busquei, sim, a
compreensão weberiana. No entanto, não permito que minhas inclinações
ideológicas e minha utopias pautem as interpretações que faço dos processos,
episódios e personagens sobre os quais escrevo. História panfletária, nem
pensar! Me curvo às evidências que brotam dos arquivos, e elas não cessam de
surpreender com um universo muito mais complexo do que caberia numa explanação
fácil e porventura maniqueísta, que divida o mundo entre o herói e o bandido.
Meus
livros são povoados de escravos que fogem de toda parte para toda parte, criam
quilombos nas periferias da Cidade da Bahia ou nos mangues de Barra do Rio de
Contas, se levantam em nome de Alá e de Ogum, mas nesses escritos também se
encontram escravos que negociam com seus senhores um cativeiro menos opressivo.
Escravos que querem e senhores que permitem a acumulação de bens e a compra da
alforria. A maioria de meus personagens têm nomes, subjetividade, não são peças
passivas da máquina escravista. Bilal Licutan, Luiz Sanin, Manoel Calafate,
João Malomi, Francisco e Francisca Cidade, Zeferina, homens e mulheres à frente
das revoltas escravas baianas. O alufá Rufino José Maria, liberto malê que
virou cozinheiro de navio negreiro e pequeno traficante transatlântico de
gente. Domingos Sodré, adivinho e curandeiro nagô que fornecia beberagens a
escravos para amansar seus senhores, mas era ele próprio senhor de escravos.
Manoel Joaquim Ricardo, dono de dezenas de escravos, liberto haussá que prosperou
a ponto de ser contado entre os homens que formavam os 10% mais ricos de
Salvador. E alguns outros mais...
Contudo,
termino com um aviso aos navegantes: a ascensão social aconteceu para poucos
escravos desembarcados ou nascidos no Brasil. A maioria morreu escravizada. No
balanço final, fico com Joaquim Nabuco, que escreveu:
Não
importa que tantos dos seus filhos espúrios tenham exercido sobre irmãos o
mesmo jugo, e se tenham associado como cúmplices aos destinos da instituição
homicida, a escravidão na América é sempre o crime da raça branca, elemento
predominante da civilização nacional...