Livro conta história do Verão em que 15 mil latas de maconha foram jogadas no mar do Rio



Tem gente que duvida até hoje: em 1987, um navio com 22 toneladas de maconha, guardadas em latas, jogou tudo no mar. A erva boiou do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul. Foi o animado Verão da Lata, tema do livro de mesmo nome do jornalista carioca Wilson Aquino
Pire aí no roteiro pra lá de cinematográfico: um navio pesqueiro de bandeira do Panamá sai da Austrália e vai para Cingapura, onde pega uma carga de 22 toneladas de maconha. Tudo acondicionado em latas, dessas de leite em pó, e embalado a vácuo. O destino final é Miami, nos EUA – olhe só que viagem. O governo americano, por dentro da movimentação, dá o alerta geral.
A tripulação fica sabendo que a polícia brasileira está na cola. De modo a evitar o flagrante, as 15 mil latas, cada uma com 1,5 quilo de maconha, são jogadas ao mar. Para alegria dos usuários da erva de uma larga faixa de terra – cerca de 2 mil quilômetros – entre os estados do Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, que acharam o material boiando.
A história mirabolante é de cinema mesmo, mas não de ficção, e sim de documentário – tanto é que um está sendo feito pelo diretor Tocha Alves. De setembro de 1987 até os primeiros meses de 1988, milhares de latas foram chegando às praias.
Tudo isso é contado e ilustrado pelo jornalista carioca Wilson Aquino, 50 anos – com metade da idade na época do fato – no livro Verão da Lata (LeYa/Barba Negra, R$  45/240 págs.). A expressão que batiza a obra é a forma como a estação ficou conhecida.
A gíria, aliás, não foi moda de um Verão só. Quando alguém queria dizer que algo era bom, dizia “é da lata”. “As pessoas comentavam que a maconha era ‘da boa’. Na época, o produto vendido no Rio de Janeiro não era considerado muito bom. E as latas continham maconha com uma qualidade muito grande”, diz Wilson Aquino.

Solon, Solomon 

O autor afirma não ter fumado a mítica maconha da lata – “era uma coisa mais restrita à orla da cidade, e eu morava no subúrbio”, diz. A história tem pitadas de drama também. Como o Brasil ainda era atormentado pela memória dos Anos de Chumbo da Ditadura Militar, a euforia com a descoberta dividia espaço com a apreensão. Quem era achado com maconha apanhava muito e ia em cana, conta Wilson.
Teve gente alugando barco para a busca, em uma verdadeira caça ao tesouro. E surfista trocando as ondas de verdade por outras ondas – eles ficavam atentos ao brilho do metal ao sol. E a polícia caçando todo mundo.
Muita gente até hoje acha que tudo não passa de lenda urbana. “Esse foi um dos motivos para escrever o livro”, diz o autor. O tal navio, é bom contar, era o Solana Star. Numa trapalhada policial, a embarcação entrou tranquilamente no porto do Rio, já sem as latas, jogadas em alto-mar. As autoridades americanas informaram que ele se chamava Solon Star ou Solomon Star. Ninguém se tocou que era o Solana Star.
Quando a polícia se deu conta, apenas o cozinheiro ainda estava na cidade. O resto, espertamente, já tinha dado no pé, cada um para seu país de origem. O americano Stephen Skelton sempre negou a participação na jogada. Chegou a ser condenado, mas foi solto logo depois, por falta de provas. Tudo acabou na mais pura fumaça.

Na lama 

O que também acabou em fumaça foi o conteúdo das latas. Um dos depoimentos do livro é o de Maria Juçá, uma das fundadoras do Circo Voador – famoso espaço de shows carioca, por onde passou muita gente daquele Verão, no palco e na plateia. “Deixei uma (lata) em uso, dei uma para meu amigo artista circense e enterrei duas no quintal”, recorda. Certo dia, chegou em casa e encontrou tudo revirado. Achou que era a polícia. Quando foi ver, era o tal amigo, todo sujo de terra, escavando o jardim em busca das latas perdidas.
O roqueiro Serguei, entrevistado pelo autor, também garante que pescou e fumou da erva, em Saquarema, no estado do Rio. “Gente que nem era surfista veio de prancha, alugou prancha, comprou prancha”, relembra. Um camarada emprestou uma rede de pesca para Serguei. “Bicho, eu não fumo isso aí! Eu não sou maconheiro, mas vou lá para sacar qual é porque não é possível (ser verdade)”, disse o músico na época.
E teve gente que nem sabia o que era aquilo. “Teve caiçara que encheu o cachimbo com a erva e fumou como se fuma tabaco. Outros tocavam fogo na erva para espantar mosquito. Alguns até cozinharam a maconha”, escreve Wilson. Cada um em sua própria viagem, na onda que veio do mar.

Salvatore Carrozzo

Fonte: Correio