CARTA RELATA COMO ERAM ENTERRADOS ESCRAVIZADOS E INDIGENTES NO SÉCULO XVIII

 

Em 26 de abril de 1735, os irmãos da Irmandade de São Benedito estabelecidos no Convento de São Francisco, descrevem em carta enviada ao Rei Dom João V, a situação deplorável em que se enterram seus irmãos e solicitam esquive próprio para tal fim.

A carta traz detalhes da burocracia que envolvia os sepultamentos e que era monopólio da Santa Casa de Misericórdia.  

  

É também verdade, que a Misericórdia tem três tumbas, sendo duas de maior asseio, vindo a terceira para os mais pobres, porém, não com a caridade e desinteresse, o se aponta, pois a raríssimos chega esta gratuita piedade exatíssimas averiguações que se fazem ainda acerca dos mais indigentes, cujos cadáveres ficam muitas vezes demorados pela grande repugnância que há de se enterrarem sem estipendio, para cujo enterro não há outro remédio mais que pedir esmolas e valer-se do devoto concurso delas quando chega para dar sepultura ao defunto, sendo levado da dita tumba, e se acaso esta ultima e ínfima se concede para algum escravo sempre é pelo interesse da esmola, com que a estimação ou caridade de seus senhores concorre, e nunca graciosamente, sendo levados a sepultura cobertos todos de um pano desprezível, e para servir ordinariamente para enterros de pretos cativos não há mais que um chamado esquife fabricado rudemente de uns toscos paus com três varões, um para diante e dois para trás, o qual, conforme os corpos que lhe metem dentro, que sucede as vezes serem dois ou três juntos, carregam dois ou três negros quase totalmente nus, sema mais vestido que uma tanga na cintura, servindo o mesmo esquife de cobertura um pano mui vil, ao qual esquife ou padiola lhe chamam Banguê, tão ludibrioso e ridículo, que serve de irrisão e galhofa pública aos rapazes, e tem sucedido algumas vezes pelos longes das ruas assim desta cidade como dos subúrbios dela largarem os cadáveres no chão no meio do caminho, e retiram-se donde resulta virem as tumbas ou esquifes de algumas irmandades para os levarem conforme a caridade dos compassivos e da mesma sorte acontece frequentemente lançarem os defuntos corpos nos adros das Igrejas, principalmente de religiosos, os quais se vem precisados a darem-lhe sepultura, pois tem os senhores, por mais barato esta inumanidade, do que experimentar as demoras e embaraços das averiguações de sua pobreza, com que muitas vezes, além de se corromper primeiro o cadáver, fica totalmente dificultada a sepultura, cujos desconcertos e desordens são públicas e notórias nesta cidade. Nem é possível que o referido Banguê possa bastar a infinidade de escravos que cotidiana e anualmente morrem nesta cidade, por passarem muito além de mil.

FONTE: https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=005_BA_AV&Pesq=enterrO&pagfis=32283 

Para saber mais:

João José Reis, A Morte é Uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular No Brasil Do Século XIX.

DOCUMENTOS SOBRE O CEMITÉRIO NO CAMPO DA PÓLVORA



A recente descoberta da localização de um cemitério de escravizados no Campo da Pólvora vem mobilizando pesquisadores de diversas áreas. Documentos disponíveis no projeto resgate pode trazer mais informações sobre a sua história e localização, e desta forma colaborar com a pesquisa arqueológica. Segue aqui transcrição de parte da documentação que trata do tema, trata-se de solicitações do então Arcebispo da Bahia, José Botelho de Matos, que solicita a construção de um cemitério na região do Campo da Pólvora.

Em idos de 1741, José Botelho de Matos, Arcebispo da Bahia, solicita a construção de um cemitério em terreno extra muros na Cidade da Bahia. Insatisfeito com a profanação das tumbas da Sé, que segundo ele: “despejo imundo, cujo infeccionado vapor chegava insuportável e indecentemente até o altar mor da dita Sé, amontoando-o mais os cadáveres que no dito adro se vão a sepultura por essa ser feita por escravos a superfície da terra, e por isso com facilidade desentranhados dela por animais que os devoram”

Na tentativa de solucionar a questão, Botelho solicita a construção do dito cemitério, que seria construído no Campo da Pólvora, para tanto foi enviado corpo burocrático e feita vistoria no local:


FONTE: AHU_ACL_CU_005, Cx. 73\Doc. 6104  

Termo de vistoria e exame

Ao primeiro dia do mês de dezembro de mil setecentos e quarenta e um anos, nesta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos, na Casa da Pólvora das trincheiras onde foi o Procurador mor proprietário da fazenda Real deste Estado Luiz Lopes Pegado Serpa com o Desembargador Manoel Antonio da Cunha Solto Maior Procurador da fazenda Real e comigo escrivão dela o Sargento maior engenheiro Nicolau Abreu e Carvalho e o mestre e Juiz do ofício de pedreiro Manoel Antunes Lima, para efeito de se ver e examinar a área que fica entre a casa da mesma pólvora e a trincheira imediata para nele se fazer o cemitério na forma da portaria retro do Excelentíssimo Conde Vice Rei deste Estado, e sendo visto e examinado o referido sitio, reconhecendo-se a pouca e limitada área dele para se fazer o cemitério e o grande prejuízo que daquela obra se pode seguir ao serviço de sua Majestade e dano a sua real fazenda em poder haver algum incêndio causado pelos pretos que forem enterrar os cadáveres ou o que abrir as sepulturas para eles, por serem os ditos pretos de gênio de não poderem estar um só estante, que não tenham liame aceso para os cachimbos, fazendo fogueiras ou fachos, conforme as farristas e horas, e destes se possa participar faíscas que se introduzam ou por telhados ou por outra qualquer parte e de qualquer destes acessos seguir-se incêndio formal que cause o maior dano a toda esta cidade. O que tudo ponderado pelos ditos Ministros e dito sargento mor engenheiro e mestre pedreiro juiz do oficio assentaram que de nenhuma sorte era conveniente se fizesse no dito sitio o referido cemitério, o qual só se podia fazer sem prejuízo algum do serviço real da defensa das trincheiras e bem comum da cidade no flanco da mesma trincheira mais para baixo na entrada e caminho que vem da dita casa da pólvora para a casa do trem, porque nesta paragem, além de ser maior terreno e capaz para o ministério do dito cemitério, não causa de nenhuma sorte prejuízo algum a outro qualquer que se lhe possa opor, salvo quando por ordem de sua Majestade mande o mesmo senhor reedificar novamente as ditas trincheiras que no tempo presente se acham arruinadas, e de todo o referido mandou o dito Procurador mor este termo que assinou com o dito Desembargador Procurador Régio, Sargento mor engenheiro e juiz do oficio João Dias da Costa escrivão proprietário da fazenda real do estado o escrevi.

Assinaturas...

 

A íntegra da documentação está disponível em:  https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=005_BA_AV&hf=resgate.bn.gov.br&pagfis=46728  

Outras informações:

https://www.ba.gov.br/fpc/2021/04/08/leialdirblanc-historiadora-lanca-site-sobre-o-cemiterio-dos-escravos-do-campo-da-polvora-no-decorrer-dos-seculos-xvi-ao-seculo-xviii

 

https://www.salvadorescravista.com/lugares-esquecidos/campo-da-p%C3%B3lvora

 

https://atarde.com.br/salvador/cemiterio-descoberto-em-salvador-deve-ser-escavado-1305239

HISTÓRIAS DE LIBERDADE: BANCO DE DADOS RESGATA CARTAS DE ALFORRIA NA BAHIA

 


A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center

Antônio, natural da costa da África, foi escravizado em Alagoas no início do século 17 e obteve sua liberdade por 350 mil-réis. No entanto, mesmo após seis anos de alforria, seu antigo senhor, Joaquim do Ó, tentou voltar a escravizá-lo repetidamente. Para proteger sua liberdade, Antônio registrou sua carta de alforria em um tabelionato distante do seu ex-senhor, em Salvador.

 


Em outro caso, Joaquim teve sua alforria escrita em 1825, quando tinha sete anos. Mas a carta só foi registrada seis anos depois e, mesmo assim, seu antigo senhor impôs a condição de que ele continuasse como seu acompanhante e fosse submetido a castigos domésticos. 

Esses são apenas alguns dos mais de cinco mil casos documentados no banco de dados de cartas de alforria (“Manumission Papers Database”) que o historiador e pesquisador freelancer Urano Andrade desenvolve há mais de uma década, como técnico coordenador e digitalizador de imagens do projeto, que é liderado pelo historiador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), João José Reis. Digitalizando registros históricos armazenados no Arquivo Público do Estado da Bahia, eles estão construindo uma base de dados sobre a história da escravidão e da liberdade no estado, cuja capital, Salvador, chegou a ser o maior porto de comercialização de escravizados das Américas. 

 ACESSE NA ÍNTEGRA: 

https://apublica.org/2024/12/banco-de-dados-resgata-cartas-de-alforria-na-bahia/ 

MARIA QUITÉRIA DE JESUS, HEROÍNA DA PÁTRIA E SENHORA DE ESCRAVIZADOS

 

Conhecida na história do Brasil como combatente nas lutas pela Independência do Brasil na Bahia, a heroína também viveu as dinâmicas do seu tempo, onde o mais humilde ser, e até mesmo escravizados possuíam outros escravizados. Maria Quitéria não fugiria a esta dinâmica da época. Ao alforriar o seu escravizado Mauricio, avaliado em quatrocentos mil réis, o perdoa em cem mil réis, recebendo trezentos mil réis pela sua liberdade, um gesto de "bondade" para quem lhe serviu tanto. Assina a seu rogo sua filha, Luísa Maria da Conceição, em nove de outubro de 1852, um ano mais tarde Maria Quitéria faleceu. Mauricio, longe de ser um herói, mas lutando como tal, seguiu trilhando os caminhos árduos de um recém liberto, pois havia uma linha tênue entre a escravidão e a liberdade, que fazia de Mauricio e milhares de libertos e libertas heróis e heroínas de suas próprias histórias, reveladas nas folhas manuscritas de nossos arquivos, que revelam ao mesmo tempo a história não contada de uma heroína e de Maurício, que se tornou apenas mais um liberto sem história para ser exaltada.  

 


Liberdade de Mauricio, nagô

Ao Tabelião Neves. Bahia, três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Seixas. Número nove. Cento e sessenta. Pagou cento e sessenta réis. Bahia, três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Andrade Silva Rego. Pela presente carta assinada por minha filha Luiza Maria da Conceição, única herdeira que tenho, concedo a meu escravo Mauricio nagô sua liberdade pela quantia de trezentos mil réis, o que enquanto o seu valor seja de quatrocentos mil réis, eu lhe perdoo cem mil réis por caridade, recebida a dita quantia ao passar esta, presente as testemunhas abaixo assinadas, cuja liberdade lhe permito muito de minha livre vontade, sem levar a terceiro, para que rogo as justiças de Sua Majestade Imperial e Constitucional a façam cumprir e guardar como nela se contem, gozando-a o referido escravo, como se de ventre livre nascesse. Bahia, nove de outubro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Por Maria Quitéria de Jesus, Luiza Maria da Conceição. Como testemunha que esta escreve a rogo da Senhora Dona Maria Quitéria de Jesus, por em falta de vista Bernardo José Nobrega, Nicácio Jorge Martins, Maria Luiza da Conceição. Reconheço os sinais. Bahia, três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Em fé de verdade sinal público. Francisco Ribeiro Neves. Reportei, me reporto e conferi na Bahia, em três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Eu Francisco Ribeiro Neves, Tabelião de Notas. Por mim escrivão. José Pereira França. Ribeiro Neves.

FONTE: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro de Notas nº 305, página: 111.  

CORTA BRAÇO, DE ROÇA COM RIACHO, REPRESA, AÇUDE E FÁBRICA DE TECIDOS PARA LOCAL DE RESISTÊNCIA POPULAR NO BAIRRO DA LIBERDADE NO SÉCULO XIX

 

O Corta Braço, situado onde hoje é Bairro do Pero Vaz, aparecia nas manchetes de jornais a partir das décadas de 40 e 50, o periódico O MOMENTO, estampava as mazelas sofridas pela população desde a sua “criação” em 1946, entretanto, uma escritura de arrendamento de um brejo para criação de uma fábrica de tecidos em 1852, revela que este local já existia desde o século XIX, e curiosamente já se industrializando. O local também foi ocupado pela Capoeira de Mestre Waldemar, que na década de 50 mantinha seu barracão no Corta Braço, e registrado pelas lentes do Frances radicado na Bahia Pierre Verger. Abaixo citações que relatam a história do Bairro.

Terreiro de Waldemar, Carybé, 1964. 

“Estabelecemos que o Corta Braço surgiu só em 1946, recebendo os moradores de lá a permissão de ficar em 1947. Temos dúvidas que M Waldemar logo em 1946/47 começou construir seu barracão lá. Existem fotos de P. Verger de 1948 mostrando a roda de Waldemar, mas não o barracão. As dicas de lá e cá dizem para nós que existiram pelo menos 2 barracões. Isso é evidente das fotos de A. Brill de 1953 e P. Verger de 1955. Além disso os lugares parecem ser diferentes, o mestre não modificou um barracão ao outro/novo e em vez disso mudou o local: provavelmente de Liberdade (velha) a Corta Braço em 1954”.

A "invasão" do Corta Braço, em 1946[!], hoje o bairro de Pero Vaz, foi o primeiro movimento social, em Salvador [..]. Carvalho e Pereira, 2014.

A ocupação começou em agosto de 1946, de início, apenas algumas famílias ocuparam a área, sobretudo, as que moravam próximas ao local [..]. Segundo alguns antigos moradores, o nome advém do fato de que ali era um grande matagal onde abrigava toda sorte de ladrões que assaltavam e feriam, por meio de armas brancas, transeuntes que faziam dali um caminho alternativo entre a Estrada da Liberdade e a Baixa de Quintas. Araújo, 2010.

O ano de 1946 registra a primeira grande invasão coletiva na cidade do Salvador, a invasão do Corta-Braço, situada justamente no bairro popular da liberdade, que, apesar das constantes ações judiciais e policiais para sua desocupação, é legalizada em 1947 por um ato de desapropriação do então governador Otávio Mangabeira, a reboque do final do Estado Novo e do retorno ao processo eleitoral democrático. Souza, 1991

Os terrenos foram liberados para os moradores de lá no 1 maio de 1947. Jornal O Momento, 1948

[...] durante seus primeiros anos, entre 1946 e 1948, o Corta Braço passou a ser sede de encontros semanais da roda de capoeira do Mestre Waldemar. Alguns anos depois a roda se transforma em um barracão [..]. Santos, 2018

 



A ESCRITURA: 

Escritura de arrendamento por tempo de dezoito anos que faz José João da Cunha herdeiro e inventariante dos bens de seus finados pais, do brejo da sua roça, cita a Estrada das Boiadas, a Paulo Pereira Monteiro, pelo preço de 100$000 por ano, pagos em semestres adiantados como abaixo se declara.

Saibam quantos este instrumento de Escritura de arrendamento virem, que no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e cinquenta e dois, aos doze dias do mês de junho nesta Cidade da Bahia e Cartório do Tabelião, por quem sirvo, compareceram a esta outorgantes havidos e contratados, a saber, como arrendatário José João da Cunha e rendeiro Paulo Pereira Monteiro, reconhecidos pelos próprios das testemunhas abaixo assinadas e esta de mim Tabelião que dou fé, perante as quais pelo arrendatário foi dito, que em qualidade de herdeiro e inventariante do casal de seus finados pais José João da Cunha e Dona Úrsula Moreira da Cunha, arrendava ao segundo outorgante o brejo da sua Roça situada a Estrada das Boiadas com porta para o Corta Braço, por tempo de dezoito anos, que principiam a correr do dia vinte e oito de março próximo passado do corrente ano, pelo preço anual de cem mil réis, pagos adiantados, para que possa o mesmo segundo outorgante ocupá-lo, represando nele a água do Dique ou açude do Queimado, podendo para esse fim levantar mais treze palmos no paredão atual da represa que contém as águas, que dão movimento a sua fábrica de tecidos, assim como lhe é concedido o direito de roçar até quinze palmos em roda do lugar que for ocupado pela água e para que esta fique represada, aliás, fique resguardada de impuridades que lhe venham da parte superior, e que findo o prazo do presente arrendamento se obriga ele primeiro outorgante a renová-lo por outro tanto tempo, de preferência as pessoas que forem possuidoras das águas do Queimado por um preço razoável, que não exceda a mais de duzentos mil réis por ano. E pelo segundo outorgante foi dito, que aceitava a presente escritura a ele feita com todas as clausulas e condições e obrigações dela. E finalmente por eles partes foi mais dito que por suas pessoas e bens se obrigam a terem e manterem e cumprirem e guardarem a presente escritura como nela se contêm e de não revogarem, nem reclamarem por si ou por outrem em tempo algum por ser de livres vontades feita assim a outorgaram, pediram e aceitaram e aceitam bem e aceitei em nome das pessoas presentes que direito tenham e tocar possa. Selo número setenta e cinco cento e sessenta. Pagou cento e sessenta réis. Bahia, vinte e nove de maio de mil oitocentos e cinquenta e dois. Silva Rego Andrade. Está conforme e foram testemunhas presentes que depois de lida por mim Raimundo Vitorino, ambos assinaram com os outorgantes depois de lida, digo, presentes José Joaquim Machado Guimarães e Olímpio José de Menezes, ambos assinaram com os outorgantes depois de lida por mim Raimundo Vitorino Pereira Tabelião interino que a escrevi. José Joaquim Machado Guimarães, Olímpio José de Menezes, José João da Cunha, Paulo Pereira Monteiro.

FONTE: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro de Notas nº 303, páginas: 65v/66.



SÚPLICA DE UM PRESO PELA PAIXÃO DE CRISTO

 


Os braços na cruz vêm pela vossa redenção: Hoje um filho de Adão me faz neste lugar vir, pelo qual venho pedir, tenhas dele compaixão, no que pede a petição! Se isto os tereis se concede, pois ele humilde vos pede por minha morte e paixão.


A vós Príncipe Soberano, por este Deus, cujo poder imitais na terra vos suplica Venceslau José soldado do regimento de artilharia e preso na Fortaleza da Conceição, tenha dele misericórdia, pois tendo obtido de Vossa Alteza Real a sua demissão ficando em seu lugar um homem, e como este passados alguns duas desertasse, foi o suplicante preso e havido como desertor se acha na Fortaleza da Conceição a dois meses e tantos dias, e como este procedimento seja contra o Real Aviso de Vossa Alteza, cujo mandato se deve rigorosamente cumprir, vos suplica por este Deus que diante dos Vossos olhos tendes lhe perdoes e mande o soltar para amparo de uma Mãe, que achando-se numa avançada idade se vê impossibilitada de poder adquirir os meios da sua subsistência para tanto.

Para Sua Alteza Real que pela vossa Real Graça e Santa Piedade tenhas misericórdia do Suplicante.

Documento gentilmente enviado por Eduardo Cavalcanti 

Fonte: Arquivo Nacional,  Ministério da Guerra, Caixa: 824, Pacote: 4, Engajamento de tropas estrangeiras 1823-1828. 

    

Estatística da Capitânia de Rios de Senna do Ano de 1806







Fonte: Arquivo Nacional, Caixa: 93, Pacote: 1, Código do fundo: D9. Vice Reinado sem data. 
Documento gentilmente cedido por Eduardo Cavalcanti, pesquisador sediado no Rio de Janeiro. 

MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES | Vicente, José e Luzia – “viver das criações”

 


O arquivo não é uma nota; não foi composto para surpreender, agradar ou informar, mas para servir a uma polícia que vigia e reprime. É a coleta de palavras (falsificada ou não, verídica ou não – esse é um outro problema), cujos autores, coagidos pelo fato, jamais imaginaram que pronunciariam um dia. [...] vestígio bruto de vidas que não pediam absolutamente para ser contadas dessa maneira, e que foram coagidas a isso porque um dia se confrontaram com as realidades da polícia e da repressão. Fossem vítimas, querelantes, suspeitos ou delinquentes, nenhum deles se imaginava nessa situação de ter de explicar, de reclamar, justificar-se diante de uma polícia pouco afável. Suas palavras são consignadas uma vez ocorrido o fato, e ainda que, no momento, elas tenham uma estratégia, não obedecem à mesma operação intelectual do impresso. Revelam o que jamais teria sido exposto não fosse a ocorrência de um fato social perturbador. De certo modo, revelam um não dito. [1]

Autos criminais seguem o ritmo de outros documentos que ficam para a história: “a sua natureza essencialmente lacunar – ‘o arquivo não é um stock de que se retirariam coisas por prazer; ele é constantemente uma falta’ – e até, por vezes, ‘a impotência de não saber o que fazer deles’”. [2] Mas podemos acrescentar, ao tratarmos de fontes judiciárias, que elas têm a capacidade de evidenciar ambiguidades no âmbito de sistemas escravistas.

Autos criminais, cíveis e tantos outros permitem à historiografia brasileira documentar amplamente lutas, enfrentamentos, desobediências cotidianas. A resistência tem sido uma importante resposta às mais variadas formas de opressão. Trazer a história de Vicente e seus parceiros para uma revista extramuros acadêmicos é ampliar o conhecimento desse fato, que (oxalá) nada mais terá de amnésico. [3]

A história de Vicente começa com a sua fuga de uma fazenda em Casa Branca, sertão da província de São Paulo, numa época em que o tráfico interprovincial de escravizados estava em alta e os preços de cativos caminhavam na mesma direção. A fazenda pertencia a Benedicto Ferreira, um senhor de Campinas-SP, que, por certo, se aborreceu diante da situação. Na sua bem-sucedida fuga, Vicente retornou a Caetité-BA e aquilombou-se em Bonito, atual Igaporã-BA.

De imediato nos perguntamos como Vicente conseguiu tal proeza. Algumas comparações podem ajudar. Na mesma Campinas, cerca de sete anos antes da fuga de Vicente, no dia 5 de dezembro de 1872, “às 6 horas da manhã mais ou menos”, Manoel, escravizado, natural do Ceará, também evadira: “[...] agora sabe-se com certeza que elle se dirigiu para a Província de Cuyabá ou Goiás; tendo-se agregado a uma tropa que para ali se dirigia”. Manoel fugiu sob a acusação de assassinato de João da Silva Ferreira, administrador da fazenda Funil e filho do senhor de Manoel. Assim como Vicente e Manoel, escravizados buscaram tropas para escapar ao cativeiro em terras alheias. Fugas intensificadas por ocasião do tráfico interprovincial. Vicente e Manoel, baiano e cearense, respectivamente, são representativos de muita gente escravizada transportada compulsoriamente das províncias do Norte para as temidas matas do café nas províncias do Sul. As tropas apareciam para escravizados fugitivos como um meio mais seguro e eficiente, haja vista o conhecimento dos caminhos e a chance de apoios diretos ou indiretos. E isso implicava em acordos prévios com trabalhadores das tropas, sejam estes livres ou escravizados. [4]

Ao que tudo indica, Vicente Caetano de Brito foi negociado no sertão da Bahia para São Paulo em finais dos anos 1870. Passamos a conhecer um pouco mais da sua história com processos criminais que registram aquilo que Arlette Farge sabiamente denomina de “um fato social perturbador”.

No dia três de dezembro de 1886, Vicente foi preso, qualificado e inquirido pela Justiça em Caetité, sob a acusação de assassinato. Disse em seu depoimento: “[...] veio de São Paulo, a sete anos pouco mais ou menos”, que era “lavrador e carpina”. Questionado sobre a acusação de assassinato – unânime entre as testemunhas – afirmou “[...] que atribui ser por ter elle réo andado sempre ocultamente [...] que tem prova com todos os moradores do Bonito, e principalmente com os seos ex-senhores Joaquim Caetano Villas e o Capitão Júlio Bernardes de Brito, em cuja companhia estava trabalhando quando se deo a morte de José”. [5]

Em dias do mês de agosto ou setembro [1885] [...] no lugar denominado trez passagens, distrito do Bonito, tendo Vicente se offerecido para acompanhar José de tal, crioulo, escravo do casal do finado Tenente Coronel Bernardo de Brito Gondim, que tinha vendido um gado que possuía para com o resultado pecuniario tratar de sua liberdade; aconteceo que no referido lugar das trez passagens, elle Vicente consumou o plano que tinha, assassinando o infeliz Jose, com o único e exclusivo fim de roubal-o, e não satisfeito em conduzir o dinheiro, conduzio também uma capanga da vítima conhecida por muitas pessoas que virão em mão do denunciado. [6]

Vicente e José lutaram de modo pertinaz pela liberdade. Uma luta que transformou antigos amigos em algozes, gerando perdas para ambos. Os acontecimentos que marcaram essas lutas somam-se aos depoimentos de testemunhas: “[...] que sabendo vir o réo presente em companhia de seo marido, dito José, pedira ella ao réo que não o matasse em caminho, porque receiava que elle assim o fizesse visto como todos sabem ser elle um malvado”. [7] Vicente, considerado pelas testemunhas “malvado”, e José, “bem insinado”, eram amigos. Tanto que, na noite anterior à morte de José, Vicente o ajudara na contagem do dinheiro, na confecção da capanga de couro que havia “cosido no bolso delle José”.

O corpo de José foi encontrado pelos “camaradas” da casa de seu senhor, no despenhadeiro das “Trez Passagens”. Desconfiaram pelo “[...] grande fedor de animal morto” e considerando que “[...] o referido escravo, [não] sendo certo da vista, poderia ter se abysmado no despenhadeiro. [...] Seguirão e voltarão trazendo o chapéo do referido escravo, facão do mesmo, um saco com baitata e cebôlas, e mais uma toalha com uma banda de rapaduras”. [8]

O reconhecimento dos pertences de José revela uma vida social de grande proximidade:

[...] por ser voz geral que depois da morte de José, o réo presente appareceo dispondo de quantia que por certo seria do assassinado José, por quanto elle testemunha conheceo perfeitamente uma cédula de vinte mil réis, por haver nella encontrado um signal ainda em mão de Atilio Fagundes de Brito, que com esse dinheiro havia pago a José Crioulo umas rezes que comprou ao mesmo José. [9]

A capanga de José era “[...] conhecida por muitas pessoas que virão em mão do denunciado”. Também disseram que, depois do ocorrido, Vicente “[...] appareceo com dinheiro fazendo compras, inclusive de uma casinha”. O sapateiro Cezar Alves Moreira, de 19 anos, disse que “[...] vira o réo presente com a mesma capanga de José”. [10]

Consta no processo criminal de 1885 que José havia “[...] vendido um gado que possuía para com o resultado pecuniário tratar de sua liberdade”. José vendeu reses. Como as adquiriu? Ao que tudo indica, o sistema de sorte (ou giz) estendia-se a escravizados. [11]

Vicente encontrava-se preso em 1892, sentenciado “no grau máximo do art. 359 do Código Criminal”, [12] quando o seu pedido de apelação foi negado. Não ficam bem claros os percursos de Vicente nesses autos, no entanto é possível acrescentar referências ao acompanhar a sua trajetória noutra acusação, em processo criminal anterior, como veremos adiante.

Antes, é preciso compreender porque, no depoimento de três de dezembro de 1886, Vicente considerou que a acusação lhe recaía por “[...] ter elle réo andado sempre ocultamente”. Essa questão somente é esclarecida em processo criminal anterior, de 13 de junho de 1881, no qual o escravo Vicente fora acusado pela morte da “liberta Luzia”. [13]

 

Nos autos de 13 de junho de 1881, consta que Vicente, natural de Caetité, estava com 24 anos de idade e pertencia a Benedicto Ferreira, um senhor de Campinas, província de São Paulo. Segundo o Promotor Público da Comarca, Vicente fugira e teria se aquilombado nos arredores do arraial do Bonito (atual Igaporã, província da Bahia). Nesses autos, Vicente fora acusado pelo assassinato da liberta Luzia, “[...] às 10 horas da noite, em sua caza”, [14] na vila de Caetité: primeiro a teria espancado e depois disparado um tiro, “[...] de que morréo incontinente”. O promotor, que relatou “o ocorrido” no inquérito, tomou iniciativas imediatas. Pediu prontamente ao juiz da Comarca de Caetité, “[...] que se sirva de mandar proceder a formação da culpa, passando-se mandado de prizão contra o denunciado, e formando-se força para captura delle e de todos os mais que forem encontrados no quilombo”. [15]

O promotor público solicitou ainda, ao mesmo juiz, que o réu fosse enquadrado no art. 192 do Código Criminal, “[...] por ter-se verificado a circunstância qualificativa do artigo 16 parágrafo 14 do mesmo código, em grau médio (galés perpétuas)”.

No depoimento das testemunhas, Vicente foi também acusado de praticar furtos nas fazendas da vizinhança, fato que não negou em seu depoimento. Disse viver,

[...] de comer criações do Senhor Julio Bernardo de Britto, do Senhor Alferes Joaquim Caetano Villas Boas, do Senhor Tenente Landisláo Jozé da Cunha, do Senhor Constantino Chaves, do Senhor Alferes Antonio Pinheiro, e do Senhor Galdino Cardoso de Souza. [16]

Quando questionado sobre os cativos que viviam no quilombo, acrescentou que “[...] tinha trez mulheres, sendo duas de nomes Bernardina e Maximiniana e os escravos Cyro do Senhor Polycarpo Xavier de Azevedo, Victor do senhor Doutor Fraga e Cypriano do Tenente Landislao”. Seguiu o seu depoimento discorrendo sobre furtos e repasses que realizava com seus parceiros de quilombo e também com outros cativos na região. Vicente expôs essa trajetória com riqueza de detalhes,

[...] Disse que elle com Severiano carregarão arrôes do Senhor Ernesto de Brito para o que já Severiano havia arrombado a porta e janella da caza onde estava o arrôz. Disse que foi chamado por Severiano para furtarem um porco no quintal do Senhor Silvestre, e que chegando lá furtarão uma trouxa de roupa pertencente ao mesmo Silvestre; havia promessa de Severiano quando houvesse sal de lhe dar um bôi manso da Gameleira do Tenente Vicente Pinheiro para ser morto para o quilombo. Disse que fazia furtos de mandioca da roça do Tenente Ladislao elle com Severiano e na mesma roça vio por vezes o Roberto do José Pereira, tambem furtando; disse que Severiano tornou-se contra elle por cauza de um dinheiro que o mesmo lhe ficou devendo e não quiz pagar. Com o mesmo Severiano furtarão uma porca do Senhor Alferes Joaquim Caetano e que foi visto neste dia pelo Senhor Joaquim Borges. [...] Disse mais que quanto a morte de Luzia de tal, que imputavão a elle, que não foi elle, pois em a noite que matarão elle estava na Gameleira onde foi robar do escravo Athanasio e ahi matou uma ovelha. E nada mais respondeo nem lhe foi perguntado [...][17]

Ao falar das criações e produção local e explicitar um dinamismo muito próprio ao quilombo, que fabricava farinha e negociava com a vila a produção e os bens furtados, iluminou amplos aspectos da vida cotidiana sertaneja. Trouxe ainda ligações mantidas entre trabalhadores livres e escravizados e demonstrou o repasse realizado por escravizados que adquiriam pólvora, chumbo e bala (também na vila), produtos proibidos à venda para cativos. Consta nos autos o registro de que Luzia frequentava o quilombo, assim como outros escravizados e trabalhadores livres.

No depoimento de Vicente aparecem articulações entre escravos do quilombo e pequenos comerciantes do arraial do Bonito (atual Igaporã). Embora (e estranhamente) não tenha sido chamado a depor nos autos de 1881, Severiano foi mencionado por Vicente, no seu minucioso depoimento, como principal articulador dessas relações:

[...] a farinha feita no quilombo erão dispostas neste arraial pelo Severiano o qual ficou com o couro e as criações alli matadas [...] quando não hia Severiano ao quilombo mandava sua caseira Candinha [...] elle fornecia a Honório farinha, carne, mandioca, e o dito Honório também freqüentava o quilombo [...] Disse que com Severiano furtou um capado do Senhor Alferes Jozé Caetano Villas Boas [...] Severiano e Honório dispunha dos couros e das creações e comprava pólvora, chumbo e ballas para elle Vicente. [18]

É possível supor que Severiano fosse o mediador das negociações entre aquilombados e senhores locais, fator que lhe serviu de proteção até mesmo perante a Justiça. Os depoimentos, em sua maioria, falam ainda de um escravo por nome Martinho, visto na casa de Luzia logo após o crime, que a todos contou ter assistido ao assassinato, mas não reconheceu o responsável, “[...] pelo escuro da noite”. Deve-se considerar que se tratava de uma pequena vila, onde deveria “correr”, por todos os lados, conversas sobre os recorrentes furtos praticados por Vicente, dando margem à “população do lugar”, principalmente aos senhores da região, afastá-lo da circulação na vila e arredores.

A liberta Luzia pareceu não ser bem quista pela vizinhança da vila: “[...] Luzia tivera, três dias antes do crime, uma dúvida com Ana Maria, amazia de Bernardino Rego”. Outra testemunha, quando questionada se Luzia tinha alguma malquerença, disse que “[...] algumas pessoas queixavam della”; noutro depoimento, um vizinho disse que “tinha algumas mulheres na rua que prometião de dar nella Luzia”. [19]

Apesar de aparecer nos depoimentos indicações de intrigas de Luzia com mulheres da vizinhança, que inclusive a ameaçavam, o escravo Vicente foi incriminado, mesmo negando a sua participação no crime e atribuindo aquela acusação “[...] ao ódio particular que lhe vota toda a população do lugar”. Teria Vicente assassinado Luzia? Talvez jamais possamos nos certificar. Os processos, quando trazem uma acusação dessa natureza, apresentam a ambiguidade de vozes dissonantes e dificilmente, mesmo com apurada leitura, é possível concluir com segurança. Ainda é preciso dizer que interessa ao pesquisador contemporâneo a reconstituição de contextos, o que nos desloca e desobriga das ilusões de um suposto “resgate do que realmente aconteceu”.

Trajetórias semelhantes à de Vicente recolocam a importância de processos criminais como fonte da história, especialmente quando o tema de estudos se dirige a experiências sociais de escravizados e forros. Nota-se, prima facie, que apesar do cativo não ser “reconhecido” nos Tribunais, isto é, ser considerado juridicamente incapaz, também nesse espaço a sua situação foi ambivalente. Ali, queira ou não, a Justiça, “[...] teve de reconhecer a capacidade de ação dos escravos, colher seus depoimentos e interrogá-los, julgá-los e puni-los por seus atos e iniciativas”. [20]

Podemos, no entanto, afirmar que as ações de Vicente feriram normatizações daquela sociedade, romperam com a ordem, ao tempo em que colocaram em xeque a propriedade legitimadora da sociedade escravocrata: vimos até aqui um escravo fugitivo, aquilombado, praticante de furtos e, por fim, acusado de assassinato.

No encaminhamento final dos autos, o curador (espécie de advogado) de Vicente apelou para o Tribunal da Relação, em Salvador, capital da Província, mas não foi possível verificar se houve comutação da pena. Na pronúncia da sentença final, Vicente foi condenado e incurso no art. 192 do Código Criminal (já referido).

Os autos permitem identificar redes de contato de escravizados “aquilombados” com gente da região para a realização de pequenos negócios. [21] Esses pequenos negócios, que auferiam ganhos a escravizados do sertão, se diferenciavam daqueles conquistados em cidades como Salvador ou Rio de Janeiro. [22] É certo que, em ambos os casos, escravizados amealhavam a sobrevivência em conformidade com perfis de economias locais. No caso do sertão, como essa economia se dirigia para os trabalhos no campo, foi principalmente dali que cativos buscaram reunir pecúlio para alforrias. Dificilmente senhores do sertão poderiam prover o sustento de todos os seus escravos e camaradas, também, por isso, era necessário tornar mais flexível o acesso aos meios de subsistência. Nessa medida, ampliavam-se as margens de negociação entre escravizados e senhores. Essa condição revela-se essencial para compreendermos de que modo, desde a escravidão, cativos e forros interagiram na microeconomia regional, organizaram e improvisaram a sobrevivência cotidiana, e constituíram laços que os impeliram a permanecer na região no pós-abolição.

De outro lado, processos criminais semelhantes àquele que envolveu Vicente confirmam as considerações traçadas pela historiadora Maria Cristina Wissenbach quanto às ações de escravizados consideradas pelas autoridades judiciais como furtos:

[...] os inquéritos relativos a tais crimes demonstram a presença de receptadores – alianças fundamentais na destinação dos produtos do roubo e, portanto na consumação dos crimes – e que depõe sobre a larga rede de agentes vinculados à economia informal, realizada na base de barganhas, trocas e empréstimos [...] aos olhos dos poderes públicos, a preocupação concentrava-se nos graus de aderência entre escravos e homens livres, presentes nessas práticas que, constantemente, oneravam os moradores da cidade. [23]

A trajetória de Vicente também nos lembra uma situação já acentuada pela brasilianista Mary Karasch: “[...] muitos escravos rebeldes nem pensavam no processo de alforria, preferindo ‘libertar-se’ por meio da fuga”. [24] Faça-se a ressalva de que, enquanto muitos encontravam “sua liberdade nas florestas”, Vicente quis vivê-la em meio a seus amigos e parentes, no arraial do Bonito, próximo a Caetité, de “onde era natural”. De certo que, para Vicente, o seu retorno à “terra natal” mostrava-se bem mais vantajoso, haja vista que poderia contar com o apoio de amigos, parentes, outros cativos e forros, homens livres e mesmo de senhores locais, como vimos. Apesar de todas as mazelas de uma fuga longa e difícil, foi bem menos complicado para escravizados como Vicente readaptarem-se ao antigo lar do que se ajustarem às novas condições de vida das províncias distantes.

Análise da vida cotidiana presente nos autos criminais alargam as possibilidades de apreensão dos mais variados aspectos das trajetórias de escravizados e forros. As alforrias constituíram um desses aspectos, notadamente naquele momento de acentuadas migrações compulsórias que reduziam drasticamente as chances de conquistar a tão sonhada carta de liberdade.

Lentamente, autos criminais revelam muito mais que crimes... uma leitura crítica dessa fonte permite pensar “fatos sociais perturbadores” transmutados em crimes nos espaços jurídicos. Nas delegacias e fóruns, o “viver das criações” transformava-se em furto, portanto, em crime... jamais em meio de sobrevivência para aqueles que precisavam tirar o sustento das “mãos cerradas da fortuna”, na feliz expressão de Ecléa Bosi. [25]

Nos limites deste texto, autos criminais registraram fugas bem arquitetadas e sucedidas no auge do tráfico interprovincial; frequentes negociações entre senhores locais e aquilombados; inserção de cativos na economia local, aspecto relevante para aferição de pecúlio à conquista de alforrias, tema recorrente na nossa historiografia. [26] Vicente, José, Luzia e tantos outros dão mostras das dinâmicas da vida escrava no Brasil oitocentista... e, assim como eles, muitos escravizados vieram à luz porque “um dia se confrontaram com as realidades da polícia e da repressão”.

 

NOTAS

1. FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2009.

2. PEDRONI, F. Imagens apesar de tudo, parte 2. NOTA manuscrita. Disponível em: <https://notamanuscrita.com/2021/01/26/resenha-imagens-apesar-de-tudo-parte-2/>. Acesso em: 27 set. 2021.

3. Lembro que a trajetória de Vicente foi documentada em dois momentos de meus estudos e pode ser consultada em O crime na cor (2003) e Fios da Vida (2009), ambos publicados pela Editora Annablume, São Paulo.

4. PIRES, M. de Fátima N. Travessias a caminho – tráfico interprovincial de escravos, Bahia e São Paulo (1850-1880). Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017. Disponível em: www.revistas.uneb.br/index.php/africas/article/view/4390. Acesso em: 21 set. 2021. Esclareço que mantenho a ortografia original dos documentos em meus textos. Considero que o estilo narrativo agrega informações que devam passar pelo escrutínio crítico do pesquisador.

5. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 26-26v.

6. PEB. Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 10.

7. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 17.

8. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 19.

9. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 20.

10. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 20.

11. “Pelo sistema da sorte, recebiam, conforme contratado, um de cada quatro, cinco ou seis bezerros dos que ferrasse, anualmente, no gado sob seus cuidados[...]. Denominavam também de giz esse sistema que retribuía o vaqueiro com aproximadamente 25% da produção do gado, no final do quatriênio contratado. [...] O regime de sorte estendia-se, eventualmente, aos criatórios de equinos e muares das mesmas fazendas de gado e mais raramente às miúças – ovinos, caprinos e suínos – típicas de pequenos criadores, para autoconsumo”. NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma Comunidade Sertaneja - da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1998. p. 251-252 (grifo nosso). Deve-se lembrar que as reses perdidas ou mortas eram descontadas do quinhão do vaqueiro.

12. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (decreto n. 847, de 11 de Outubro de 1890: 312): “Art. 359. Se para realizar o roubo, ou no momento de ser perpetrado, se commeter morte: Pena – de prisão cellular por doze a trinta annos. Paragrapho único. Se commetter-se alguma lesão corporal das especificadas no art. 304: pena – de prisão cellular por quatro a doze annos.”

13. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime de 13.06.1881. Série: Apelação crime. Est. 05, cx. 176, doc. 13, 117 f.

14. APEB. Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est. 05, Cx. 176, Doc. 13, fl. 15.

15. APEB. Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est. 05, Cx. 176, Doc. 13, fl. 42.

16. APEB. Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est. 05, Cx. 176, Doc. 13.

17. APEB. Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est. 05, Cx. 176, Doc. 13.

18. APEB. Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est. 05, Cx. 176, Doc. 13, f. 58-59.

19. APEB. Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est. 05, Cx. 176, Doc. 13, fl. 45-48.

20. WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos Africanos. Vivências Ladinas. Escravos e forros no Município de São Paulo - 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998.

21. R. Conrad assinalou situação semelhante: “Em 1876, na província do Rio de Janeiro [...] (os) Quilombo Grande e Quilombo do Gabriel [...] estavam localizados num vasto pântano de mangues com uma saída para o mar, facilitando a comunicação com o Rio de Janeiro e um mercado dessa cidade para lenha de mangue, que ali crescia em abundância de alimentos e cachaça. Num dos quilombos, a polícia encontrou cinco armas de fogo, duas espadas, dois machados e duas foices. No segundo, foram encontrados um mosquete de caça carregado, uma canoa, machados, foices, enxadas, uma rede de pesca, algumas ferramentas de carpinteiro e sessenta e quatro embalagens de lenha, com tudo isso tendo sido confiscado”. CONRAD, Robert E. Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil (1850-1888). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

22. M. Karasch afirma: “[...] o ambiente urbano do Rio facilitava a alforria. Os escravos tinham maior probabilidade de obter a liberdade na cidade do que nas zonas rurais”. KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Sobre escravos de ganho em Salvador, ver MATTOSO, K. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990; e, para São Paulo, DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

23. WISSENBACH, op. cit.

24. KARASCH, op. cit.

25. DIAS, 1995.

26. A participação de escravizados em pequenos negócios e nas mais variadas partes do Brasil foi amplamente documentada pela historiografia da escravidão. A lei de 1871 somente “regulariza” essa situação: “Art. 4º: É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e seguranças do mesmo pecúlio”. CONRAD, op. cit. Mendonça afirma: “Ainda que fosse prática recorrente nas relações de escravidão, foi efetivamente a lei de 28 de setembro de 1871 que reconheceu ao escravo o direito de constituir um pecúlio com o qual pudesse indenizar seu senhor para obter a alforria. [...] Artigo 4º da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871 [...]” MENDONÇA, Joseli M. Nunes. A arena jurídica e a luta pela liberdade. In: SCHWARCZ, Lilia M. e REIS, Letícia V. de Souza. Negras imagens: ensaios sobre a Cultura e Escravidão no Brasil. São Paulo: Edusp: Estação Ciência, 1996.

MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES. É professora Associada III da Universidade Federal da Bahia (campus de Salvador), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, área de Teoria da História e História da Historiografia. Escreveu O Crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888) (São Paulo, Annablume, 2003); Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima (1860-1920) (São Paulo, Annablume, 2009).

FONTE: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/maria-de-fatima-novaes-pires-vicente.html?m=1 

 

 

 

COMPRADA PARA CASAR-SE E VIVER DE PORTAS ADENTRO COM SEU SENHOR

 


Cópia da Carta de Liberdade da preta Luiza de Nação Mina conferida por seu senhor João de Deus

Digo eu João de Deus crioulo forro que por esta confirmo a liberdade que já conferia a Luiza de nação mina escrava no ano de mil setecentos noventa e cinco por compra que dela fiz a José de Siqueira Silva por cento e cinquenta mil réis para com ela me casar como me casei e com ela vivo de minhas portas a dentro e poderá gozar da dita Liberdade que ratifico como se de ventre livre nascesse, e para sua inteira validade lhe faltar alguma cláusula em direito necessário aqui a dou por expressa e declarada rogando as Justiças de Sua Majestade a queiram fazer cumprir e guardar como nela se contém, e por não saber ler nem escrever roguei ao Senhor João Pinto de Lacerda esta por mim fizesse e como testemunha assinasse e a me assinar com o meu sinal costumado que é uma cruz. Bahia, quatorze de julho de mil oitocentos e dois. Sinal de João de Deus, uma cruz. Como testemunha que esta fiz João Pinto de Lacerda, Manoel Pereira Dias, como testemunha que também vi fazer. Ignacio Barboza da França Corte Real, Reconhecimento, Reconheço a letra dos sinais supra serem dos próprios que escreveram e assinaram pelos ter visto escrever e assinar algumas vezes da Bahia, quinze de julho de mil oitocentos e dois. Estava o sinal público. Antônio Barbosa de Oliveira. Distribuição. Ao Tabelião Ferreira, Bahia, quinze de julho de mil oitocentos e dois. Simões. E não se continha mais na dita carta de Liberdade que eu Valentim Rodrigues Ferreira Tabelião Público do Judicial e notas nesta sobredita cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos e seu termo por Sua Alteza Real que Deus Guarde bem e fielmente, fez aqui copiar da própria que me foi apresentada e a entreguei a quem de como a recebeu abaixo assinou e com outro Oficial comigo ao concerto assinado esta conferi, subscrevi, concertei e assinei na Bahia, aos quinze de julho de mil oitocentos e dois. E eu Valentim Rodrigues Ferreira Tabelião que a subscrevi, concertei e assinei.   

FONTE: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro de Notas 147, página: 172.


DE ESCRAVIZADO NA BAHIA A CATIVO NA NOVA INGLATERRA


Em 1805, João da Silveira Torres passa carta de alforria a seu escravizado Luís, natural do gentil da Costa da Mina, oficial de Tanoeiro, seria mais uma carta de alforria dentre as milhares registradas nos Livros de Notas do Tabeliães Baianos, não fosse o fato de Torres narrar o motivo da alforria: “Digo eu João da Silveira Torres, que entre os bens que possuo sou senhor e possuidor de um escravo de nome Luís do Gentil da Costa da Mina oficial de Tanoeiro o qual por ser tomado pelos Ingleses na mesma Costa da Mina e levado Cativo para a Nova Inglaterra por onde andou, e fazendo o mesmo escravo todas as diligências para vir a minha companhia e ainda a sua custa e trabalho até que o conseguiu, e por esta causa é minha vontade dar-lhe Liberdade gratuitamente”...

As informações acima descritas na carta dão conta da história de Luís, mas não nos diz muito a respeito de como ele conseguiu chegar de volta a Bahia. Quanto ao seu senhor, é descrito como homem do mar em outros documentos, provavelmente um traficante de escravizados.

Essa e outras histórias fazem parte de um projeto que já segue a 13 anos, e que em breve poderá ser acessado.


Carta de Liberdade de Luís da Costa da Mina

Digo eu João da Silveira Torres, que entre os bens que possuo sou senhor e possuidor de um escravo de nome Luís do Gentil da Costa da Mina oficial de Tanoeiro o qual por ser tomado pelos Ingleses na mesma Costa da Mina e levado Cativo para a Nova Inglaterra por onde andou, e fazendo o mesmo escravo todas as diligências para vir a minha companhia e ainda a sua custa e trabalho até que o conseguiu, e por esta causa é minha vontade dar-lhe Liberdade gratuitamente, e a puder lograr e possuir de hoje para todo o sempre sem que por meus herdeiros e sucessores ou outras quaisquer pessoas que nisso Direito tenha que lhe possa impedir, pois que, de hoje e para todo o sempre se acha livre de todo o Cativeiro e o faço de minha Livre Vontade e sem Constrangimento de Pessoa alguma, para o que peço as justiças de Sua Alteza Real que se lhe faltar aqui alguma cláusula, condições ou solicitação de que o Direito recomenda ei por expressadas e declaradas em si de cada uma fizesse especial menção como também a queiram cumprir e guardar como nela se contém para constar em todo o tempo por ser feita tão somente assinado. Bahia, 14 de fevereiro de 1805. João da Silveira Torres, Ignacio Francisco Braga. Distribuição. Ao Tabelião Campelo. Bahia, 22 de fevereiro de 1805. Sinal. Reconheço o Sinal retro sendo do próprio nele contendo por se comparecerem com todos que do mesmo tenho visto em tudo sempre. Bahia, 22 de fevereiro de 1805. José Rodrigues estava o Sinal público. E não se continha mais coisa alguma neste de tudo disse a verdade que aqui foi declarado de como a recebeu, o que assinei junto com o oficial abaixo assinado. Bahia, 22 de fevereiro de 1822.

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção de Arquivos Judiciários, Livro de Notas 152, páginas: 79v/80.