A mais de uma década venho tabulando as cópias das cartas de alforrias registradas nos livros de notas custodiados no Arquivo Público do Estado da Bahia, com 20.981 cartas já tabuladas de 1800 a 1857. Hoje tive a grata surpresa de saber que uma dessas cartas conta a história de Eufrozina, filha da cabra Macaria, tetravó de Lucas Valencio. Deixo aqui o seu depoimento e a importância de se preservar a documentação histórica tão negligenciada pelos nossos governantes.
Fonte: APEB, Seção Judiciária, LN 275, página 15.
Em 2014
tive o prazer de conhecer o Professor Urano Andrade no Arquivo Público do
Estado da Bahia enquanto eu realizava uma pesquisa genealógica de um ramo de
minha família, essa pesquisa já durava onze anos e eu não saia do lugar. A
nossa conversa se restringiu apenas sobre seu equipamento de fotografia, e ele
me deu algumas dicas de como eu poderia melhorar os registros de documentos
mesmo com um simples celular.
Os anos
se passaram e eu finalmente consegui encontrar o que tanto buscava: o registro
de casamento de meus trisavós, Laurindo e Eufrozina. O casal formado por um
pescador e uma escravizada.
Percebi
que esse casamento foi um evento muito especial, não somente por se tratar de
pessoas especiais para mim, mas pelo fato do documento dizer que minha trisavó
era filha natural de um homem, ignorando a identidade de sua mãe. Ou seja, os
pais dela não eram casados e ela levava apenas o sobrenome do pai.
Para os
dias de hoje, seria normal esse tipo se declaração em um registro civil, porém
estamos falando de um documento de 1840, onde filhos naturais não tinham os
nomes de seu genitor em seus registros e suas genitoras jamais eram ignoradas a
não ser que eles tivessem sido abandonados, mas não era o caso.
O
problema de se pesquisar genealogia é nunca se contentar com um achado, é o
desejo inquietante de prosseguir. Foi isso que me fez encontrar o seu batismo
que, trouxe outra surpresa: minha trisavó Eufrozina era filha de Macaria,
escrava do homem que aparecia como seu pai em seu casamento, ela já tinha cinco
anos quando foi batizada e tinha recebido sua alforria antes disso.
Quando
resolvi pesquisar sobre as Cartas de Alforria, se elas ainda existiam e onde
estavam guardadas, descobri que muitas delas já haviam sido digitalizadas e
catalogadas e que, através delas, era possível descobrir a origem da minha
trisavó, de onde ela veio, de qual nação ela era originária.
Sem
acreditar que isso possível de se alcançar, por sempre imaginar que essa
documentação poderia ter se perdido com o tempo, vi quem eram os responsáveis
por esse incrível projeto. Me encheu de orgulho saber que, Professor Urano,
aquele homem que eu tive a oportunidade de conhecer anos atrás no Arquivo
Público, estava à frente de algo tão colossal.
Resolvi
entrar em contato com ele e me identificar em meio a tantas outras pessoas que
prestigiam o seu trabalho, o que me trouxe uma mistura de sensações. Junto com
o retorno do Professor, veio a Carta de Alforria de Eufrozina, nela
identificada como “a mulatinha Eufrozina”, tratada ali como um objeto
qualquer, e chocante informação que
possivelmente ela era filha de um traficante de escravos com uma mulher
escravizada.
É
exatamente isso que esse projeto representa, esse mix de sensações. É esse
sentimento de pertencer a algo e a um lugar, ao mesmo tempo em que ele faz o
sangue de qualquer ser humano ferver, por amor, por revolta e por orgulho. Amor
pelos antepassados, revolta pelo que aconteceu com eles e os milhares de outros
e orgulho por saber que esse país foi construído com o suor e o sangue de todos
eles.
Só me
resta agradecer a todos os envolvidos, em especial ao Professor Urano, por
manter essa história mais viva do que nunca e por dar voz aos nossos
antepassados.
Muito
obrigado, Lucas Carneiro Valencio