Barras de ferro encontradas no naufrágio de navio negreiro; elas eram usadas para fazer peso na embarcação.
KATHLEEN
GOMES
Pela
primeira vez foram encontrados vestígios de um naufrágio que terá ocorrido com
escravos a bordo. Uma descoberta histórica que poderá avançar o conhecimento
actual sobre o tráfico transatlântico, dizem os investigadores.
Há 30
anos, caçadores de tesouros descobriram os destroços de um naufrágio ao largo
da Cidade do Cabo, na África do Sul, que identificaram como sendo de um navio
holandês afundado em meados do século XVIII. Só em 2010 é que uma equipa
internacional de arqueólogos marítimos suspeitou que o navio podia ter outra
origem.
Seriam
precisos mais cinco anos de pesquisa e múltiplos mergulhos em águas furiosas
até que os investigadores anunciassem, esta terça-feira, a sua descoberta
histórica: um navio português carregado de escravos proveniente da ilha de
Moçambique e a caminho das plantações de açúcar no Brasil.
Transportando
entre 400 e 500 negros acorrentados no porão, o navio nunca terá chegado a
completar a travessia de quatro meses, entre o Oceano Índico e o Atlântico Sul.
Depois de dobrar o Cabo da Boa Esperança, o São José Paquete de África embateu
em rochedos a cerca de 50 metros da costa da Cidade do Cabo e ficou reduzido a
escombros. O capitão português sobreviveu, bem como a tripulação e metade dos
escravos que se encontravam a bordo. Calcula-se que 212 escravos tenham morrido
no naufrágio, que se deu no final de Dezembro de 1794.
Trata-se
da primeira pesquisa arqueológica realizada sobre um navio que se afundou
enquanto transportava escravos. “Já se encontraram navios que em tempos
carregaram escravos mas que não naufragaram durante a viagem. Este é o primeiro
de que temos conhecimento que se afundou com pessoas escravizadas a bordo”,
disse Lonnie Bunch, director-fundador do Museu de História Afro-Americana, que
vai abrir em Washington no próximo ano e que irá expor objectos resgatados do
local do naufrágio.
Pinos de cobre encontrados no naufrágio do navio negreiro encontrado na costa sul-africana.
Os
responsáveis pela investigação acreditam que ela pode avançar o conhecimento
actual sobre os 12 milhões de pessoas que foram capturadas em África e
transportadas à força para a América do Norte, do Sul, Caraíbas e Europa. E o
São José é “especialmente significativo”, nota Lonnie Bunch num comunicado,
“porque representa uma das primeiras tentativas em incluir africanos da costa
oriental no tráfico esclavagista”, prática que se prolongou até ao século XIX.
Supõe-se que mais de 400 mil africanos tenham sido levados de Moçambique para o
Brasil entre 1800 e 1865.
Esta
descoberta resulta do trabalho desenvolvido pelo Slave Wrecks Project (Projecto
Naufrágios de Escravos), uma joint-venture de investigadores de museus e
instituições norte-americanas e sul-africanas que têm mantido o seu labor de
anos praticamente em segredo, não só porque queriam ter resultados conclusivos
antes de qualquer anúncio, mas também para proteger o local do naufrágio de
potenciais pilhagens de caçadores de tesouros.
A
descoberta do São José foi finalmente revelada esta terça-feira, na Cidade do
Cabo, no mesmo dia em que uma equipa de mergulhadores depositou terra trazida
da Ilha de Moçambique, o ponto de embarque, no local do naufrágio, em memória
das vítimas. Esta quarta-feira, também na Cidade do Cabo, o simpósio Bringing
the São José Into Memory (Trazendo à Memória o São José) vai juntar
investigadores, curadores e historiadores de instituições sul-africanas,
norte-americanas e moçambicanas em debates sobre o naufrágio, o comércio
esclavagista e a questão da memória. Não há nenhum português entre os oradores
convidados.
A
investigação que permitiu identificar o São José envolveu não só o trabalho
arqueológico no local do naufrágio, mas também pesquisas em arquivos,
nomeadamente portugueses. Em 2012 os investigadores descobriram no Arquivo
Histórico Ultramarino o manifesto de carga do São José, com detalhes sobre a
partida do navio de Lisboa, em Abril de 1794, rumo à Ilha de Moçambique. O
documento contém informação sobre um elemento que a equipa de investigadores
considerou a pista mais providencial em todo o processo: o São José deixou
Lisboa com 1.500 barras de ferro que se destinavam a ser usadas como lastro.
Essas
barras eram comuns nos navios negreiros, para manter a estabilidade das
embarcações, até porque o peso da carga humana variava nas longas travessias
transatlânticas. Nem todos sobreviviam à viagem; as barras serviam para
contrabalançar essa variação. Foi a descoberta de barras de ferro no naufrágio
que levou os arqueólogos a determinar que o navio transportava escravos.
No ano
anterior, em 2011, os investigadores tinham encontrado nos arquivos
sul-africanos outro documento fundamental: o relatório do capitão do São José,
Manuel João Pereira, descrevendo o naufrágio de 27 de Dezembro de 1794. Segundo
o testemunho, que está redigido em português, o capitão e a tripulação tentaram
salvar os escravos, até porque se tratava de uma carga rentável. Alguns foram
enviados para terra numa barcaça, mas os ventos e as correntes fortes impediram
o regresso da barcaça ao naufrágio para resgatar mais escravos. O documento
refere-se aos membros da tripulação como “homens”, mas não os escravos, segundo
o New York Times.