Desde a transição democrática,
em 1985, a sociedade brasileira tornou-se melhor. Não tanto no plano econômico,
onde o progresso foi modesto, mas nos planos social e político, onde os avanços
foram grandes.
Somos ainda uma sociedade
injusta, mas a desigualdade diminuiu; somos ainda uma sociedade autoritária,
mas agora os eleitores pobres têm voz e são respeitados; somos ainda uma
sociedade elitista, mas nos demos conta desse fato, e estamos tentando construir,
mais do que um Estado democrático, também uma sociedade democrática.
Talvez a demonstração mais
extraordinária dessa mudança de atitude foi a aprovação no Congresso Nacional e
a sanção pela presidente Dilma da lei que estabeleceu uma cota geral de 50% das
vagas nas universidades públicas e escolas técnicas federais para os estudantes
das escolas públicas oriundos de famílias com até um salário mínimo e meio per
capita.
O que imediatamente me ocorreu,
ao ver os deputados e senadores aprovarem uma lei com alto conteúdo democrático
e humano como é esta, foi que os brasileiros não se deixaram perverter pelo
individualismo feroz dos 30 Anos Neoliberais do Capitalismo (1979-2008).
Que, não obstante as críticas
insistentes que os ricos e a classe média tradicional vêm fazendo à política de
cotas, as ideias de solidariedade e de coesão social falaram mais alto no
Brasil.
E que seus representantes no
Parlamento, hoje tão prejudicados em sua imagem, souberam compreender esse
fato.
Mas "essa política não
considera o mérito", dizem os críticos conservadores. Mérito medido de que
maneira? Mérito medido em exames vestibulares, quando o último Ideb para o
ensino médio foi de 3,5 para os alunos das escolas públicas contra 5,7 para as
escolas privadas?
Essa diferença brutal deixa
muito clara a imensa desvantagem dos pobres na competição para chegar ao ensino
superior no Brasil. Portanto, em termos de justiça, a política de cotas está
corretíssima.
Mas estará essa política
correta em termos de eficiência, entendida esta como o melhor uso dos recursos
humanos do país? Não estaríamos com ela dificultando que os jovens com maior
potencial cheguem à universidade? Pelo contrário, argumento que a política de
cotas dá oportunidade aos melhores.
O raciocínio é simples, e não
está baseado no fato bem conhecido de que os jovens pobres são mais motivados
pelo estudo. Os estudantes das escolas públicas representam cerca de 80% do
total dos alunos do ensino médio.
Se supusermos que, em termos de
potencial inato, os estudantes das escolas públicas e particulares são em média
igualmente inteligentes e criativos, é necessário concluir que os 2% de alunos
mais brilhantes dos 80% por cento das escolas públicas são, em média, mais
capazes que os mesmos 2% dos 20% das escolas particulares.
Creio que este raciocínio
explica a experiência das universidades que introduziram cotas. Os alunos por
elas beneficiados têm desempenho geralmente muito bom, não obstante terem
aprendido muito menos nas suas escolas do que os alunos das escolas privadas.
Com a política de cotas as
universidades que tomaram a iniciativa de adotá-las, os brasileiros e agora o
Parlamento brasileiro que as torna obrigatórias não estão sendo apenas
democráticos e solidários; não estão apenas pensando em justiça.
O argumento da justiça já seria
suficiente para justificá-la, mas quando a ele se soma o do mérito associado ao
do potencial, a política de cotas ganha plena inteligibilidade e legitimidade.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é
professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, onde ensina economia, teoria
política e teoria social. É presidente do Centro de Economia Política e editor
da "Revista de Economia Política" desde 2001. Foi ministro da
Fazenda, da Administração e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia.
Escreve a cada duas semanas, aos domingos, na versão impressa de
"Mundo".
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