Miram Leitão
O escritor romântico José de Alencar, de “O Guarani”, “Iracema” e tantos outros, era também um fervoroso militante do escravagismo. Como parlamentar e jornalista, ele se entregou com paixão ao debate do século XIX para manter o que ele chamava de “instituição”. Seus argumentos revisitados são reveladores do país em si. De alguma forma, há algo deles entre nós.
Em críticas ácidas ao imperador, inspirador de projetos abolicionistas, Alencar lança mão de tudo que possa chamar de argumento: D. Pedro II estaria agradando a potências estrangeiras, o fim da escravidão jogaria o país na guerra social, a “instituição” se esgotaria por si mesma; encerrada prematuramente, faria com que os negros cobrassem o que consideravam “justa reparação”; aqui, o cristianismo adoçara a escravidão tornando-a “mera servidão”; a escravidão no Brasil permitia que ex-escravos se integrassem perfeitamente à sociedade.
O livro “Cartas a favor da escravidão”, organizado por Tâmis Parron, tem o mérito de trazer de volta, com o frescor do momento em que foram colhidas, as palavras de um notório intelectual brasileiro defendendo o indefensável. Muito se aprende no livro. Da liberdade de imprensa do Império, da contradição e da ambiguidade do pensamento convencional, da batalha das ideias.
Os vencedores da batalha, como Joaquim Nabuco, tiveram seus argumentos exibidos. Mas o outro lado, o que sustentou por tanto tempo a perversidade, dele pouco se fala. As Obras Completas de José de Alencar sofreram um expurgo. Os ensaios “Ao Imperador: novas cartas políticas de Erasmo”, como ele as chamou, ficaram esquecidos naquele mesmo compartimento onde estão o que não gostamos de admitir de nossa história e do nosso caráter.
O leitor contemporâneo constatará que Alencar é contraditório, um pensamento ora explícito, ora envergonhado; reconhecerá sofismas de outros debates; notará a tendência de eximir o Brasil e acusar os outros países pelos nossos erros.
Das manias nacionais, o non sequitur, o pensamento sem sequência lógica, está lá. Para Alencar, a escravidão é instituição civilizadora, com a qual a Humanidade construiu o progresso; ainda indispensável no Brasil. A certa altura, no entanto, diz que a “causa moral do trabalho livre” já estava ganha no país, diz até que “para os filhos da Nigrícia já raiou a luz e raiou na terra do cativeiro”. Para ele, a “escravidão caduca”, mas o abolicionismo era um “fanatismo do progresso”. Pergunta se a escravidão é uma instituição exausta. E responde: “Nego, senhor, nego com a consciência um homem justo que venera a liberdade”, e termina afirmando: “a escravidão encerra a mais sã doutrina do Evangelho”.
O estilo radical a favor dos que adotam um tom rebelado para manter o status quo está lá também. Diz que “as doutrinas que seduziram” o imperador eram uma “conspiração do mal, uma grande e terrível impiedade”. E comparou o abolicionismo com as “seitas exterminadoras” que buscam o “fantasma do bem através do luto e da ruína”.
Os argumentos de que no Brasil a opressão é suave pela índole do povo brasileiro, ou pela mistura, estão lá. “Em três e meio séculos, o amálgama das raças havia de operar em larga profusão fazendo preponderar a cor branca. Três ou quatro gerações bastam, às vezes, no Brasil, para uma transformação completa.” Ou “resolve-se a escravidão pela absorção de uma raça pela outra”. A índole brasileira “adoça o cativeiro” até transformá-lo em “uma tutela benéfica”. Para ele: “um espírito de tolerância e generosidade, própria do caráter brasileiro, desde muito transforma a instituição.” O país já não tinha, diz Alencar, a “verdadeira escravidão”, mas o simples “usufruto da liberdade”. Afirmou que os que compram a liberdade são recebidos pela sociedade com “um espírito franco e liberal que acolhe e estimula”. Ao mesmo tempo, é explícito em seu racismo. Certo momento, lamenta que os índios tenham “preferido” o extermínio à escravidão, obrigando o país a ter o negro: “Não houve remédio senão vencer a repugnância do contato com raça bruta e decaída”.
A ideia da escravidão suave é destruída por ele mesmo. “O liberto por lei é inimigo nato do antigo dono.” Segundo Alencar, o imperador estaria expondo a nação ao risco de um “vulcão”, de “uma grande calamidade!”. A libertação exporia a população à “sanha de um inimigo irritado pela anterior submissão, movido por instintos bárbaros e exclusivamente preocupado desse desígnio sinistro que ele supõe seu direito e considera uma justa reparação de um agravo”.
Chama de “detratores da pátria” os que davam razão às críticas estrangeiras à escravidão; refere-se, com ironia, aos abolicionistas como os “filantropos” e culpa a Europa por todos os crimes que eram praticados no Brasil, já livre àquela altura. A Europa era culpada — e aqui um raro bom argumento — porque consumia os produtos fabricados com o trabalho escravo; era culpada por ter iniciado o tráfico e era culpada porque não mandava para o Brasil levas de migrantes que “despejassem sangue vigoroso para restabelecer o temperamento da população e lhe restituir robustez”.
É profético em alguns momentos. Quando diz que a escravidão acabaria em duas décadas. Ele escreveu isso 21 anos antes da abolição. Quando ameaça o imperador: “a mesma Monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estreitas e obsoletas”.
O escritor romântico José de Alencar, de “O Guarani”, “Iracema” e tantos outros, era também um fervoroso militante do escravagismo. Como parlamentar e jornalista, ele se entregou com paixão ao debate do século XIX para manter o que ele chamava de “instituição”. Seus argumentos revisitados são reveladores do país em si. De alguma forma, há algo deles entre nós.
Em críticas ácidas ao imperador, inspirador de projetos abolicionistas, Alencar lança mão de tudo que possa chamar de argumento: D. Pedro II estaria agradando a potências estrangeiras, o fim da escravidão jogaria o país na guerra social, a “instituição” se esgotaria por si mesma; encerrada prematuramente, faria com que os negros cobrassem o que consideravam “justa reparação”; aqui, o cristianismo adoçara a escravidão tornando-a “mera servidão”; a escravidão no Brasil permitia que ex-escravos se integrassem perfeitamente à sociedade.
O livro “Cartas a favor da escravidão”, organizado por Tâmis Parron, tem o mérito de trazer de volta, com o frescor do momento em que foram colhidas, as palavras de um notório intelectual brasileiro defendendo o indefensável. Muito se aprende no livro. Da liberdade de imprensa do Império, da contradição e da ambiguidade do pensamento convencional, da batalha das ideias.
Os vencedores da batalha, como Joaquim Nabuco, tiveram seus argumentos exibidos. Mas o outro lado, o que sustentou por tanto tempo a perversidade, dele pouco se fala. As Obras Completas de José de Alencar sofreram um expurgo. Os ensaios “Ao Imperador: novas cartas políticas de Erasmo”, como ele as chamou, ficaram esquecidos naquele mesmo compartimento onde estão o que não gostamos de admitir de nossa história e do nosso caráter.
O leitor contemporâneo constatará que Alencar é contraditório, um pensamento ora explícito, ora envergonhado; reconhecerá sofismas de outros debates; notará a tendência de eximir o Brasil e acusar os outros países pelos nossos erros.
Das manias nacionais, o non sequitur, o pensamento sem sequência lógica, está lá. Para Alencar, a escravidão é instituição civilizadora, com a qual a Humanidade construiu o progresso; ainda indispensável no Brasil. A certa altura, no entanto, diz que a “causa moral do trabalho livre” já estava ganha no país, diz até que “para os filhos da Nigrícia já raiou a luz e raiou na terra do cativeiro”. Para ele, a “escravidão caduca”, mas o abolicionismo era um “fanatismo do progresso”. Pergunta se a escravidão é uma instituição exausta. E responde: “Nego, senhor, nego com a consciência um homem justo que venera a liberdade”, e termina afirmando: “a escravidão encerra a mais sã doutrina do Evangelho”.
O estilo radical a favor dos que adotam um tom rebelado para manter o status quo está lá também. Diz que “as doutrinas que seduziram” o imperador eram uma “conspiração do mal, uma grande e terrível impiedade”. E comparou o abolicionismo com as “seitas exterminadoras” que buscam o “fantasma do bem através do luto e da ruína”.
Os argumentos de que no Brasil a opressão é suave pela índole do povo brasileiro, ou pela mistura, estão lá. “Em três e meio séculos, o amálgama das raças havia de operar em larga profusão fazendo preponderar a cor branca. Três ou quatro gerações bastam, às vezes, no Brasil, para uma transformação completa.” Ou “resolve-se a escravidão pela absorção de uma raça pela outra”. A índole brasileira “adoça o cativeiro” até transformá-lo em “uma tutela benéfica”. Para ele: “um espírito de tolerância e generosidade, própria do caráter brasileiro, desde muito transforma a instituição.” O país já não tinha, diz Alencar, a “verdadeira escravidão”, mas o simples “usufruto da liberdade”. Afirmou que os que compram a liberdade são recebidos pela sociedade com “um espírito franco e liberal que acolhe e estimula”. Ao mesmo tempo, é explícito em seu racismo. Certo momento, lamenta que os índios tenham “preferido” o extermínio à escravidão, obrigando o país a ter o negro: “Não houve remédio senão vencer a repugnância do contato com raça bruta e decaída”.
A ideia da escravidão suave é destruída por ele mesmo. “O liberto por lei é inimigo nato do antigo dono.” Segundo Alencar, o imperador estaria expondo a nação ao risco de um “vulcão”, de “uma grande calamidade!”. A libertação exporia a população à “sanha de um inimigo irritado pela anterior submissão, movido por instintos bárbaros e exclusivamente preocupado desse desígnio sinistro que ele supõe seu direito e considera uma justa reparação de um agravo”.
Chama de “detratores da pátria” os que davam razão às críticas estrangeiras à escravidão; refere-se, com ironia, aos abolicionistas como os “filantropos” e culpa a Europa por todos os crimes que eram praticados no Brasil, já livre àquela altura. A Europa era culpada — e aqui um raro bom argumento — porque consumia os produtos fabricados com o trabalho escravo; era culpada por ter iniciado o tráfico e era culpada porque não mandava para o Brasil levas de migrantes que “despejassem sangue vigoroso para restabelecer o temperamento da população e lhe restituir robustez”.
É profético em alguns momentos. Quando diz que a escravidão acabaria em duas décadas. Ele escreveu isso 21 anos antes da abolição. Quando ameaça o imperador: “a mesma Monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estreitas e obsoletas”.
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Colaborador desta postagem: João José Reis