ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA: NOVOS RUMOS NA GESTÃO DE JORGE X

 

"Nosso desafio é aproximar o Arquivo Público da sociedade baiana"

Novo diretor do espaço, Jorge X pretende chamar a população baiana para pesquisar suas raízes étnicas

 Publicado domingo, 26 de março de 2023 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge

Jorge X, novo Diretor do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB) - Foto: Rafaela Araújo | Ag. A TARDE

Na comunicação oficial referente ao seu cargo, o novo diretor do Arquivo Público do Estado da Bahia ainda assina seu nome de batismo, Jorge Vieira, enquanto aguarda liberação jurídica para poder se apresentar formalmente com seu nome político, Jorge X. Uma forma de expressar a sua rejeição aos sobrenomes impostos pela colonização portuguesa no Brasil. E esse tema deve ganhar relevância em sua gestão.

 

Nesta entrevista, Jorge X explica como pretende chamar a população baiana para pesquisar, através da documentação oficial, as suas origens étnicas na África.

 

Primeiro, a grande curiosidade.  Já extinguiu-se o risco de o Arquivo Público do Estado perder essa sede em um leilão?

 

Não. O processo ainda corre em relação ao leilão do imóvel.

 

Como é o perfil de quem procura o Arquivo para pesquisar documentos? Quais são os papéis mais procurados?

 Na nossa gestão, vai ter uma mudança. Inclusive a gente teve uma reunião sobre isso agora. Vamos ampliar em 50% o número de documentos a que pesquisadores,  historiadores e arquivistas terão acesso aqui no Arquivo Público do Estado da Bahia. Hoje, são dez documentos por pesquisa.  A partir de abril, vamos ampliar para quinze documentos.

 As consultas podem ser feitas atualmente uma vez por semana, mas agora essa consulta será diária. Os documentos custodiados aqui no Arquivo Público do Estado da Bahia são atas notoriais dos períodos colonial e republicano, os alvarás de compra e venda de escravizados.

São documentos que retratam a importância do Arquivo Público do Estado da Bahia. Aqui também está um conjunto documental destacado como memória do mundo. O Arquivo Público do Estado da Bahia só perde em importância para o Arquivo Nacional.

 

Eu conversei com um pesquisador que não mora no Brasil e ele demonstrou preocupação com o prazo para reserva de vaga na pesquisa porque ele só tinha uma semana a mais disponível antes de viajar e temia não conseguir fazer a pesquisa. Como estão os prazos para reserva?

 

A pessoa reserva e o Arquivo Público tem uma capacidade de reserva de 48 horas para a documentação ser preparada. Nosso patrimônio arquivístico é muito sensível, há documentos de 1823 custodiados aqui. Se não houver um preparo para que  fiquem disponíveis para os pesquisadores, eles podem se degradar ou sofrer algum tipo de acidente. Então, assim. Não é tão simples.  A gente precisa de uma equipe para ir até o depósito do arquivo e deixar pronta essa documentação.

 

Quantos pesquisadores em média visitam o arquivo em um mês?

 

No último ano, tivemos 732 pessoas que vieram ao Arquivo Público do Estado da Bahia. Nossa sala de pesquisa tem capacidade para acomodar 16 pesquisadores. Nosso sistema de pesquisa parte do princípio da isonomia e da impessoalidade do serviço público. Um pesquisador que venha de longe faz a reserva e tem a garantia do acesso à documentação. Com esse sistema, a gente garante uma fila de acesso.  Sem esse sistema, a consulta pode ficar difusa. E aí tem uma relação de poder estabelecida diante do arquivo, nós não queremos isso. A administração pública preza pelos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Nós, nesse lugar, estamos prezando por isso. Para nossa gestão, todos são iguais no acesso ao que temos aqui salvaguardado.

 

Qual o tamanho do acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia  e quais os documentos mais consultados?

 

Temos por volta de 41 milhões de documentos. Arquivisticamente, são 7,5 mil metros lineares, um cálculo que os arquivistas utilizam para medir a documentação no seu espaço de custódia. Os documentos mais procurados são, com certeza, os do acervo jurídico, que dão direito a dupla nacionalidade, os documentos  fundiários para acesso a terras, imóveis.


Recentemente, houve o centenário da morte de Ruy Barbosa e tem essa questão dos documentos comprobatórios de origem de pessoas escravizadas,  destruídos quando ele foi ministro da Fazenda.  Aqui no Arquivo Público do Estado da Bahia há documentos que podem mapear a origem ancestral  de cidadãos baianos?


Sim, com certeza há registros da escravidão e é bom que se informe também que a Fundação Pedro Calmon desenvolveu uma experiência de rastreamento genético, do qual eu fiz parte como estudante, que é justamente resgatar esses registros, uma parte desses registros, já que não foram todos destruídos por Ruy Barbosa.

Hoje, eu sei que minha ancestralidade vem do povo Ticar, no atual país de Camarões. Razão pela qual eu registrei meu filho com o último sobrenome Ticar. Esse resgate faz com que ele leve nossa ancestralidade que foi tirada no processo de colonização. Essa experiência tecnológica colocou a fundação na vanguarda dessa questão e o nosso dever é fazer um pareamento entre a tecnologia e os registros que nós salvaguardamos.

 

O senhor considera a possibilidade de fazer um chamamento ou mesmo uma campanha especificamente  para  que os baianos tentem descobrir a sua ancestralidade exata?

 

Com certeza. Junto com o professor Vladimir Pinheiro, presidente da Fundação Pedro Calmon, já estamos falando sobre isso. A ideia é aproximar os serviços do Arquivo Público do Estado da Bahia da sua população. A história da comunidade negra, da comunidade indígena, da população soteropolitana e baiana está aqui registrada.

O nosso desafio é aproximar o Arquivo da sociedade baiana, nesse sentido. E aí o que não falta é ideia. Dinamização da comunicação, trazer as escolas públicas para dentro do Arquivo, aumentar o fluxo das universidades, que já estão presentes aqui. Os pesquisadores também colaboram muito com nossa gestão, dando sugestões, dicas. E estamos numa perspectiva de uma gestão participativa.

Ontem (segunda, 20), eu tive uma reunião com historiadores, na pessoa do grande pesquisador João Reis. Aliás, não chamo aquilo de uma reunião, foi uma consultoria.  Aprendi muito e estou trazendo contribuições valorosas.

 

Tipo...

Ampliar o número de acessos, dinamizar as redes sociais, ampliar a ideia de abertura do Arquivo Público, e futuramente a construção de um prédio inteligente, que possa salvaguardar a história do povo baiano.  Seria um prédio talvez no Centro Administrativo, com estruturas de aço e vidro, que não sejam inflamáveis.

 

Uma pessoa que queira descobrir a origem histórica de sua família na África, em quanto tempo consegue a resposta?

 

Há alguns procedimentos em relação aos documentos aqui custodiados. É preciso preencher o nosso formulário de direito de uso de imagem, isso é importantíssimo. Se o documento puder ser fotografado, a pessoa pode tirar foto. Informar os dados pessoais, os documentos que pretende acessar e o período da documentação, colonial, Império.

Em 48 horas, a pessoa tem acesso à documentação solicitada. A documentação será retirada do depósito, higienizada e preparada para consulta. Se ela não estiver em condições de manuseio pelo público externo, haverá um técnico para auxiliar.  O Arquivo Público é um instrumento da sociedade baiana.  A sociedade tem o direito de acessar.

ACESSE NA ÍNTEGRA: JORNAL A TARDE

Historiador encontra rara carta de ex-escravizado tratando do racismo nas cadeias de SP após a abolição



 

Escrita em dezembro de 1888, a carta é considerada pelo historiador Flávio Gomes, que a achou, uma raridade. Além de dominar as letras, o escritor tinha consciência da questão racial, exalta o pesquisador A carta, escrita em dezembro de 1888, é considerada pelo historiador Flávio Gomes, que a achou, uma raridade. O preso, ex-escravizado, além de dominar as letras, tinha consciência da questão racial, exalta Gomes. “Senhor. Vem este triste, pobre e miserável sentenciado à galé perpétua, queira a Vossa Excelência, pela sua humanidade de justiça a fim de dar as mais divinas providências a este regulamento de absurdo, que há aqui, nesta Cadeia Pública”, apela o ex-escravizado na carta endereçada ao “ilustríssimo excelentíssimo senhor doutor alferes de Polícia da Capital”.

Diferenças para visitas

A escrita original em duas páginas, com erros de português mas boa caligrafia, foi transcrita pelo Núcleo de Paleografia do Arquivo Público do Estado de São Paulo. O ex-escravizado, que deu à carta o caráter de petição, denuncia que “a cor preta tem sido tocada daqui como cachorro”. Ele considera um absurdo que o carcereiro proíba a entrada de “mulher de nós, que somos escravos”, mesmo nos dias de visita, enquanto os encontros para presos estrangeiros eram permitidos a qualquer hora. Em outro momento, o ex-escravizado fala de discriminação nos horários impostos aos negros. “A cor preta não pode parar até o meio-dia, e a cor branca para até o meio-dia”, relata. Embora Flávio Gomes, especialista em escravidão no Brasil, não saiba a que horário exatamente Queirós se referia — pode ter, por exemplo, relação com trabalhos forçados — ele sustenta que o autor tinha noção clara das transformações que o país vivia, sete meses após a decretação da Lei Áurea, e exigia que a mudança chegasse à cadeia. — Nas Américas, são raros os documentos escritos pelos escravizados. A carta sugere que João de Queirós acompanhava os movimentos externos, como a Abolição, assim como mostrava as diferenças raciais dentro da prisão, vendo o cárcere como continuidade da escravidão — explica o professor. — Este documento revela também como o sistema prisional do século XIX se articula com escravidão e racismo, onde os condenados, muitos ex-escravizados e mesmo africanos, eram encarcerados por décadas, com suas penas de morte transformadas em prisão perpétua. Mas as condições de alimentação, visitas, roupas e acompanhamento médico são atravessadas por diferenças raciais e percepções preconceituosas do poder público. Na petição, Queirós se apresenta como sentenciado a “galés perpétua” (à época, era considerada a pena mais severa do código depois da pena de morte, geralmente aplicada em casos de homicídio). Brasileira, historiadora e professora em Princeton University, Isadora Mota disse que o documento encontrado pelo colega Flávio Gomes é raríssimo porque, no caso de homens escravizados, apenas dois em cada mil possuíam a habilidade de ler e escrever. — O uso da escrita, no entanto, mesmo que parcial, era mais comum do que os números oficiais registram. Um condenado a galés perpétua como João, por exemplo, dificilmente teria sido incluído na contagem oficial. Os caminhos e manifestações do letramento negro eram múltiplos. Alguns escravizados aprenderam sozinhos a ler ou tomaram parte em situações informais de leitura oralizada. Muitos podiam assinar apenas seus nomes quando forçados a comparecer em juízo — diz. Isadora concorda com a análise de Gomes quando afirma que a carta é “um incrível testemunho de um homem liberto sobre os limites da abolição da escravidão no Brasil”. Para ela, Queirós demonstra que o fim do cativeiro não extinguiu a discriminação racial como realidade cotidiana dos negros nas prisões do país: — O fato de que ele escreveu um requerimento legal para contestar a discriminação racial é evidência importante da consciência política dos ex-escravizados. Sabiam que precisavam lutar para que a liberdade concedida em lei viesse a existir de fato. Vejo a carta de 1888 também como legado para o movimento negro no país. A pesquisa de Gomes em arquivos públicos de São Paulo, Espírito Santo e Maranhão é financiada pelo CNPq, com destaque para o projeto “Escrita, Escolarização, Cor e no Brasil da Escravidão e pósemancipação (1860-1908)”, coordenado por ele, e com pesquisadores da UFRJ, Uerj, PUC-SP, Colégio Pedro II, UFBA e Princeton University.

FONTE: O GLOBO