Historiador encontra rara carta de ex-escravizado tratando do racismo nas cadeias de SP após a abolição



 

Escrita em dezembro de 1888, a carta é considerada pelo historiador Flávio Gomes, que a achou, uma raridade. Além de dominar as letras, o escritor tinha consciência da questão racial, exalta o pesquisador A carta, escrita em dezembro de 1888, é considerada pelo historiador Flávio Gomes, que a achou, uma raridade. O preso, ex-escravizado, além de dominar as letras, tinha consciência da questão racial, exalta Gomes. “Senhor. Vem este triste, pobre e miserável sentenciado à galé perpétua, queira a Vossa Excelência, pela sua humanidade de justiça a fim de dar as mais divinas providências a este regulamento de absurdo, que há aqui, nesta Cadeia Pública”, apela o ex-escravizado na carta endereçada ao “ilustríssimo excelentíssimo senhor doutor alferes de Polícia da Capital”.

Diferenças para visitas

A escrita original em duas páginas, com erros de português mas boa caligrafia, foi transcrita pelo Núcleo de Paleografia do Arquivo Público do Estado de São Paulo. O ex-escravizado, que deu à carta o caráter de petição, denuncia que “a cor preta tem sido tocada daqui como cachorro”. Ele considera um absurdo que o carcereiro proíba a entrada de “mulher de nós, que somos escravos”, mesmo nos dias de visita, enquanto os encontros para presos estrangeiros eram permitidos a qualquer hora. Em outro momento, o ex-escravizado fala de discriminação nos horários impostos aos negros. “A cor preta não pode parar até o meio-dia, e a cor branca para até o meio-dia”, relata. Embora Flávio Gomes, especialista em escravidão no Brasil, não saiba a que horário exatamente Queirós se referia — pode ter, por exemplo, relação com trabalhos forçados — ele sustenta que o autor tinha noção clara das transformações que o país vivia, sete meses após a decretação da Lei Áurea, e exigia que a mudança chegasse à cadeia. — Nas Américas, são raros os documentos escritos pelos escravizados. A carta sugere que João de Queirós acompanhava os movimentos externos, como a Abolição, assim como mostrava as diferenças raciais dentro da prisão, vendo o cárcere como continuidade da escravidão — explica o professor. — Este documento revela também como o sistema prisional do século XIX se articula com escravidão e racismo, onde os condenados, muitos ex-escravizados e mesmo africanos, eram encarcerados por décadas, com suas penas de morte transformadas em prisão perpétua. Mas as condições de alimentação, visitas, roupas e acompanhamento médico são atravessadas por diferenças raciais e percepções preconceituosas do poder público. Na petição, Queirós se apresenta como sentenciado a “galés perpétua” (à época, era considerada a pena mais severa do código depois da pena de morte, geralmente aplicada em casos de homicídio). Brasileira, historiadora e professora em Princeton University, Isadora Mota disse que o documento encontrado pelo colega Flávio Gomes é raríssimo porque, no caso de homens escravizados, apenas dois em cada mil possuíam a habilidade de ler e escrever. — O uso da escrita, no entanto, mesmo que parcial, era mais comum do que os números oficiais registram. Um condenado a galés perpétua como João, por exemplo, dificilmente teria sido incluído na contagem oficial. Os caminhos e manifestações do letramento negro eram múltiplos. Alguns escravizados aprenderam sozinhos a ler ou tomaram parte em situações informais de leitura oralizada. Muitos podiam assinar apenas seus nomes quando forçados a comparecer em juízo — diz. Isadora concorda com a análise de Gomes quando afirma que a carta é “um incrível testemunho de um homem liberto sobre os limites da abolição da escravidão no Brasil”. Para ela, Queirós demonstra que o fim do cativeiro não extinguiu a discriminação racial como realidade cotidiana dos negros nas prisões do país: — O fato de que ele escreveu um requerimento legal para contestar a discriminação racial é evidência importante da consciência política dos ex-escravizados. Sabiam que precisavam lutar para que a liberdade concedida em lei viesse a existir de fato. Vejo a carta de 1888 também como legado para o movimento negro no país. A pesquisa de Gomes em arquivos públicos de São Paulo, Espírito Santo e Maranhão é financiada pelo CNPq, com destaque para o projeto “Escrita, Escolarização, Cor e no Brasil da Escravidão e pósemancipação (1860-1908)”, coordenado por ele, e com pesquisadores da UFRJ, Uerj, PUC-SP, Colégio Pedro II, UFBA e Princeton University.

FONTE: O GLOBO