Em 1794, Dom
Fernando José, Governador da capitania da Bahia, enviara missiva ao Ministro da
Coroa Martinho de Mello e Castro a respeito das ideias subversivas de um Frei
barbadinho.
Chegado à
Bahia por volta de 1780, o frei seguiu por 14 anos professando, doutrinando e
catequisando as almas da cidade e dos sertões baianos, mas decorridos 14 anos
de sua estadia e vivência na Colônia, passou a questionar a escravidão africana. Suas
ideias abolicionistas arriscavam subverter a ordem vigente; com a consciência em conflito, passou a indagar a legitimidade da escravidão feita através da guerra justa
ou injusta, fazendo do confessionário o seu palanque abolicionista. Isso não
passaria despercebido aos olhos e ouvidos das autoridades locais, nem mesmo o
sagrado manto da confissão seria capaz de ocultar tais ideias. Ao desenrolar
sua narrativa ao Ministro da Coroa, Dom Fernando exalta as qualidades do Frei
José, mas admite a gravidade de suas ideias para paz local, e que, “espalhada aquela doutrina, seria grande nos escravos a revolução e grande a
aflição do espírito nos Senhores se timorata a consciência”.
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor.
O
Arcebispo desta diocese, levado daquela vigilância que sempre mostra em atalhar
qualquer doutrina em matéria espiritual que possa perturbar a tranquilidade e
sossego desta Capitania, ou opor-se às leis e ordens de Sua Majestade, me fez
saber que o padre frei José de Bolonha missionário capuchinho italiano tivera o
desacordo e indiscrição de seguir a má opinião a respeito da escravidão, a qual
se propagasse e abraçasse inquietaria contaminando as consciências dos
habitantes dessa cidade e traria para o futuro consequências funestas para a
conservação e subsistência desta colônia.
Depois
deste religioso viver neste país perto de quatorze anos, com procedimento
exemplar, cumprindo com as obrigações de seu ministério, apesar de algumas
imprudências em que rompia, e de que se abstinha sendo delas advertido pelos
seus superiores, merecendo o conceito de homem virtuoso e zeloso pelo seu
serviço de Deus, se persuadiu ou o persuadiram de que a escravidão era
ilegítima, e contrária à religião, ou ao menos que sendo estas umas vezes
legítimas e outras ilegítimas, se devia fazer a distinção entre escravos
tomados em guerra justa ou injusta, chegando a tal ponto a sua presença que,
confessando pela festa do Espírito Santo a várias pessoas, pôs em prática esta
doutrina, obrigando-os que entrassem na indagação desta matéria tão
dificultosa, por não dizer impossível de se averiguar, a fim de dar liberdade
àqueles escravos que, ou fossem furtados ou seduzidos a uma escravidão injusta,
sem refletir que, quem compra escravos, os compra regularmente a pessoas
autorizadas para os venderem, e debaixo dos olhos e consentimento do Príncipe,
e que seria maldito e contra a tranquilidade da sociedade exigir de um
particular quando compra qualquer mercadoria, a pessoa estabelecida para os
vender, que primeiramente se informassem donde elas provém, por averiguações,
além de inúteis, capazes sem dúvida de aniquilarem toda e qualquer espécie de
comércio.
Examinada
a origem desta opinião que este padre por tanto tempo não seguira, se veio no
conhecimento de que algumas práticas que tivera com os padres italianos da
Missão de Goa transportados na Nau Belém surta este porto, e hospedados no
hospício da Palma deram lugar a que este religioso se capacitasse desta
doutrina, não tanto por malícia e dolo como por falta de maiores talentos e
conhecimentos teológicos, e em razão de uma consciência escrupulosa.
Para que
uma doutrina tão perniciosa não se espalhasse, o arcebispo imediatamente o
mandou suspender de confessor, rogando-me o remetesse neste navio que segue
viagem, e que o Mestre não o deixasse saltar para a terra sem ordem positiva de
Vossa Excelência; e conferindo com o mesmo Arcebispo sobre esta matéria, para
se darem mais providências que parecem acertadas, julguei conveniente chamar à
minha presença o reitor dos referidos missionários de Goa, estranhando-lhe
vivamente a sua indiscrição, e mostrando-lhe vivamente que esta matéria era
sumamente delicada e melindrosa, e que ao Príncipe unicamente tocava
providência sobre ela, se algum dia assim o julgasse conveniente, e que
finalmente era grande inconsideração e temeridade, à vista de um prelado tão
sábio e doutor, e de todo o clero desta cidade, suscitar semelhante questão.
Procurou-se justificar-se na minha presença o Reitor, referindo-me que o Padre
Frei José de Bolonha, perguntando-lhe o seu parecer sobre este ponto, lhe
respondera, que havia escravidão legítima e ilegítima, mas que o não persuadira
a que obrasse no confessionário o que obrou, antes lhe devera, que
oferecendo-se dúvida a devera comunicar ao Ordinário; mas sem embargo desta
defesa, que me não satisfaz, por maior cautela ordenei ao Comandante da Nau
Belém, fizesse recolher para bordo aos ditos Missionários, e não ordenasse sair
para terra, sem ordem positiva minha. Deus Guarde a Vossa Excelência. Bahia, 18
de junho de 1794. Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Martinho de Mello e Castro.
Dom Fernando José de Portugal.
FONTE:
Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial e Provincial, Cartas do Governo a Sua Majestade, Maço 137, 1794-1797.
Ainda que
oprimido da gota sou obrigado a expor a Vossa Excelência o que inesperadamente
acontece.
O Padre
Frei José de Bolonha, Missionário Barbadinho, Italiano, em quase 14 anos nesta
Bahia, teve sempre a reputação de um home verdadeiramente Apostólico, zeloso da
salvação das almas e infatigável no seu ministério. É que este mesmo agora
praticamente no tribunal da conciliação não quis absolver os penitencies sem
que estes lhe prometessem a respeito dos escravos fazer uma exata averiguação,
se estes foram cativos em justa guerra ou furtados; como ele se persuadia
suceder muito frequentemente. Sobre os furtados, queria que atendendo o preço
que eles custaram, e tendo servido o tipo que correspondesse a que preço lhe
dessem os Senhores a Liberdade. Admirando eu esta sua repentina e prejudicial
novidade o mandei chamar severamente o repreendi, como a sua ação merecia, e o
suspendi logo do exercício de confessor.
Antes de
prosseguir a resposta deste Padre, me devo lembrar dos cinco Missionários do
Instituto de São Vicente de Paulo, que vindo na Nau Belém de Goa e Angola,
chegaram enfim a esta Bahia. Em três meses da sua estada aqui no Hospício da
Palma foi sempre exemplar a sua conduta. Esta me moveu a pedir ao seu Prelado
mandasse um deles a fazer nos quatro Conventos de Religiosos umas práticas em
que lhes compusessem vivamente a obrigação dos três votos que professavam. O
conceito que um deles formara-me excitou a rogar-lhe no confessionário
concorressem para o bem das almas desta Cidade. Não assentiram a esta mesma
petição alegando algumas razões que nada convenciam. Não penetrei então o
verdadeiro motivo da sua repugnância. Esta persuade agora ser este o não quererem
manifestar no tribunal da penitência o seu sentimento sobre a escravidão.
Deixados agora estes, volto ao Padre Frei José.
Este já
andava tocado do mesmo sentimento, ainda que o não tinha praticado no
confessionário. Não tendo, contudo, este tipo de comunicação com os ditos
Padres, só a teve com um deles nos dias próximos aquele, em que querendo seu
desatino manifestando-lhe o seu sentimento ou a sua dúvida com os negócios do
Padre acaba de firmar-se no mesmo sentimento inteiramente, Não quero dizer que
o Padre inspirasse a Frei José o por em prática o qual pensamento no tribunal
da penitência; pois assim ele como os companheiros nunca aqui o praticaram,
concordas todos em não confessar se alguma pessoa de confidência, como sucedem
com Frei José, o qual com as suas dúvidas concitou o Padre a manifestar o seu
juízo sem que, como se deve presumir, lhe inspirasse a praxe no confessionário.
Impedido
eu pela moléstia de ir buscar o Governo, lhe mandei dar parte de tudo para
cooperarmos logo no princípio, pois sem sofrer o mal com todas as funestas
consequências que daqui podiam resultar. Ele além do desinteresse que chega ao
sumo grau, que que nele não se é ser direito, mas pessoal, muito zeloso em tudo
o que toca a Religião e ao Estado, sem demora me veio falar. Concordamos ambos
que Frei José fosse remetido para Portugal, não por despacho da petição, que
para isso pouco antes me fizera, mas em castigo da sua culpa. Assentamos mais
que os outros Padres hospedes no Hospício da Palma, também mandados recolher a
bordo da Nau em que vieram impedindo assim a comunicação de si e doutras. Esta
era juntamente uma satisfação ao público escandalizado com o sistema de que se
seguiram muitos males assim espirituais como temporais. Confessava Frei José
que não persista todos estes males.
É certo
que ele, por um zelo indireto, cometia algumas imprudências, de que corrigido,
se emendava. Nunca julguei chegasse a esta assim capital sobre matéria tão
importante e delicada, faltando-lhe até uma reflexão abria a qualquer, como era
consultar o seu Arcebispo e o seu Prelado Regular. A nímia adesão ao seu
próprio juízo, e a sujeição ao de outro Padre que consultou o precipitaram,
quando ele no dia imediato ao do Espírito Santo me pediu Licença para embarcar,
e com esta alcançar o passaporte do Governo, expondo-me a causa de se retirar
por estar persuadido do seu novo sentimento, eu a viria a conceder, se pouco
depois me não constasse ter ele exteriorizasse o que seu juízo fora e dentro do
Sacramento. Julguei então que não devia ir já na figura de um passageiro
voluntário, mas na figura de réu. Procurei suavizar isto mesmo permitindo fosse
livre para a embarcação, e para sair dela na chegada a Lisboa esperasse o
Capitão Ordem expressa de Vossa Excelência.
Em tudo
quanto ir dito, obrei de acordo com o Governo, tendo já ouvido o parecer de
quais que eu deveria atender. Desejei obrar em tudo procurando só agradar a Deus
e a Sua Majestade. Asseguro a Vossa Excelência que nenhum dos Padres
Barbadinhos deste Hospício está tocado ainda levemente do errado parecer do
Frei José, antes cada um deles longe de pensar assim está sumamente aflito com
a novidade do seu companheiro. Jugo o mesmo dos outros, que estão paroquiando
em algumas aldeias dos Índios, cumprindo todos bem o seu ministério.
Algunhas
muitas vezes, entre fatigas e trabalho correm grande parte do Arcebispado
confessando, pregando e crismando gentes e todos os outros, que fazem disto
tudo quanto me conste, sem interesse algum temporal. O que agora digo, o
atestará no momento da morte, e na proximidade de aparecer no tribunal divino.
Concluo
com o Padre Frei José. Comecei pelo seu zelo apostólico e acabo dizendo que me
parecem sempre humilde, penitente, desinteressadíssimo. Errou agora, enquanto
maiores homens em literatura e piedade tem errado! A prova dita permite muitas
vezes estes erros para os confundir e humilhar. Se eu cumprindo a mesma
obrigação arguir, com para o castigar, não devo por isso deixar de
compadecer-me e implorar também a compaixão de Vossa Excelência com um homem,
que pecou, mais por ingenuidade que por malícia. Faltaria eu a meu maior
ministério e ao agradecimento a Deus, se tendo só reprimido seu erro, me
esquecendo de quase 14 anos que trabalhou neste Arcebispado incansavelmente.
Resta só dizer, se no que antes obrei, e agora escrevo, não hei acertado,
desculpe-me a moléstia do corpo, que com aflição do espírito se há argumentado.
A que oprimindo-me a mão impede assinar eu mesmo da carta.
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor Martinho de Mello e Castro, aos 20 de junho de 1794.
Deus Guarde A Vossa Excelência muitos anos. Bahia. Frei Antonio Arcebispo da
Bahia.
Tendo
novamente a matéria de uma das minhas cartas antecedentes, nela nada dizia, nem
agora digo, que a escravidão dos pretos olhada absolutamente, logo no seu
princípio é lícita ou ilícita, nada também do uso ou abuso, ou dos Senhores
sobre os seus escravos. Concentrava-me ao sucesso presente e sobre esta
acrescento algumas reflexões.
Se
exprimi o universal conceito que nesta Bahia tinha o Padre Frei José de Bolonha
pelo seu auxílio e constante zelo Apostólico. Igualmente expus o meu amor e respeito
aos cinco Padres que vieram da Índia pela sua exemplar conduta. Deles, deixado
agora Frei José, pelo presentemente. Como poderão alguns por ignorância ou
malícia ou também por uma espécie de piedade e compaixão censurar o que com
eles o Governo e eu obramos em s mandar recolher à sua Embarcação, exponho as
razões que assim nos moveram. O seu sentimento sobre a escravidão de baixo
daquela modificação, que já escrevi na carta antecedente, se manifesta pelas
razões seguintes propostas agora com mais detalhes.
1ª O
Padre Frei José, falando muitas vezes sobre esta matéria continuou sempre em
confessar sem adotar em quase 14 anos este novo sentimento. Rompeu nele
passando até o praticar no confessionário, logo imediatamente que saiu de uns excoricios.
Em um dia de trabalho teve larga conversação com um dos Padres, servindo aqui
muito esta reflexão, que em todo o tempo antes com nenhum deles conservara.
Parece logo que daquela conversação procedeu passar ele Frei José da dúvida
antecedente a formar-se no conceito de ser ilícita a escravidão, como se
prática, pela diuturnidade do tempo.
2ª O
mesmo Padre quando me veio pedir licença para se retirar para Portugal, me deu
por motivo o estar totalmente persuadido de ser ilícita a escravidão como se
pratica, já pela dúvida de ser justa a guerra em que foram apreendidos, e
depois vendidos, já porque, passado tempo em que com a utilidade do seu serviço
tivessem compensado o que custaram, se lhes devia a liberdade. Ele mesmo nessa
ocasião disse que além do mais para se formar no seu conceito, o movera a
autoridade e as razões daquele Padre, com que conversara, acrescentando que
todos os outros quatro eram do mesmo parecer.
3ª Por
uma carta do Prefeito dos Barbadinhos de Angola ao do Hospício desta Bahia,
consta ter-se manifestado em Angola nos sobreditos Padres o mesmo sentimento.
Não há motivo para que deixe de ter-se esta carta.
4ª Hum
homem aqui respeitável, além do caráter, pela probidade e literatura, atesta
que um dos Padres por motivo de amizade e agradecimento a alguns benefícios
instava com ele para que praticasse como necessária aquela doutrina a respeito
dos escravos.
De tudo
isto se faz manifesto que o sentimento dos Padres de interno passou a
exteriorizar-se. Parece logo ser obreiras uma providência também externa,
atendida a circunstância do tempo presente, e especialmente a condição do país,
em que espalhada aquela doutrina, seria grande nos escravos a revolução e
grande a aflição do espírito nos Senhores se timorata a consciência. É certo
que já sem a exterioridade se faria como evidente o sentimento daqueles Padres.
Em quase três meses que precederam, nenhum deles em público confessou
seculares, com exceção talvez de alguns, que não tivessem escravos, ainda
instando eu, exercitassem esse santo ministério, e pedindo a caridade na sua
estada fossem uteis a estes povos.
Ainda que
em todo esse tempo podia sair a Embarcação, se fariam muitas confissões, e as
mesmas gerais que fossem obreiras em alguns penitentes, se podiam comentar. E
quando fosse tão rápido o embarque, que alguma se não concluísse, sempre
preponderava o bem das outras muitas que tivessem precedido. Logo o motivo de
não confessar com este, em todos era, o que fica proposto. Ainda que este se
impusesse, nada com eles se obrasse, se não concorressem as circunstâncias
externas.
Como se
ignora, quanto a Nau Belém aqui se demore, Governo e eu assentamos agora
tomassem os ditos a desembarcar para o Hospício da Palma. Esta dada ao público
a satisfação, e com a correção não há perigo do mal, que se escreva. Parece
justa esta consideração com uns homes na verdade exemplares, e ainda que um
deles na conversação com Frei José oprimisse o seu sentimento, nada influiu no
seu procedimento de praticar essa doutrina no confessionário sem a conhecer o
Arcebispo, e o Prelado Regular. Essa aqui porque ele disse que os Padres estão
inocentes, querendo inculcar que o não moveram a exercitar com os confessados
aquela doutrina. Perdoe-me Vossa Excelência a repetição de muitas coisas nessa
segunda carta sobre a mesma matéria.
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor Martinho de Mello e Castro, Deus guarde a Vossa
Excelência muitos anos. Bahia, aos 25 de agosto de 1794.
Projeto Resgate, fundo Eduardo de Castro e Almeida.