Resgate do passado: Iniciativa dos mórmons recupera antigos registros de cartórios de municípios paulistas


Uma parceria entre os mórmons e um órgão do governo paulista que preserva documentos públicos vai disponibilizar para cidadãos e pesquisadores um conjunto de 25 milhões de imagens digitalizadas de registros de nascimento, casamento e morte anteriores a 1940. Um convênio celebrado em abril entre o FamilySearch, organização de pesquisa genealógica ligada à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, e o Arquivo Público do Estado de São Paulo prevê a limpeza, digitalização e indexação de 199.664 livros cartorários de dezenas de municípios paulistas. Quarenta e dois técnicos foram contratados para a empreitada, prevista para terminar em abril de 2018. O custo, bancado integralmente pelo FamilySearch, deve chegar a R$ 20 milhões. Depois de digitalizados, os documentos ficarão disponíveis gratuitamente para consulta na internet no site da organização. O arquivo paulista também poderá oferecê-los em seu site, a exemplo do que faz com cerca de 400 mil imagens de vários de seus acervos, como as fichas e prontuários produzidos pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), a polícia política paulista, entre 1924 e 1983.

O acordo garante outros benefícios para o arquivo e seus usuários. Além da digitalização de registros civis, o Family-Search se comprometeu a limpar e catalogar centenas de livros de registros de imóveis, que ficarão disponíveis para consulta na sede do Arquivo Público – esse material não será, contudo, digitalizado, porque não interessa à organização. “A higienização mecânica é muito importante, pois são livros antigos, anteriores a 1940, que por isso se tornaram de guarda permanente”, diz o historiador Wilson Ricardo Mingorance, diretor do Centro de Arquivo Administrativo do órgão paulista. Os livros estavam guardados sem catalogação. À medida que o trabalho de limpeza e indexação avançar, será possível ter uma ideia de quantos municípios são abrangidos pelo material.

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias especializou-se em reunir e disponibilizar documentos para pesquisa genealógica desde o século XIX. “Na doutrina mórmon, as relações familiares são eternas. Acreditamos que, no momento da ressurreição, todos nos reencontraremos com nossos antepassados. Então incentivamos nossos fiéis a saberem quem eles foram”, diz Mario Silva, gerente de relacionamentos do FamilySearch, organização fundada em 1894. Até cerca de 10 anos atrás, o trabalho se concentrava na produção de microfilmes em diversos países, que estão armazenados na cidade norte-americana da Salt Lake City, Utah, onde fica a sede da igreja. A partir dos anos 2000, os microfilmes cederam espaço às imagens digitais, mais fáceis e baratas de registrar. Atualmente, a organização dispõe, somente no Brasil, de 41 câmeras digitais reproduzindo documentos em diversas localidades – 20 delas estão dedicadas à parceria celebrada em São Paulo. Esse trabalho já atingiu cidades de 17 dos 27 estados brasileiros. Parte do acervo do FamilySearch pode ser consultada de forma gratuita. Quando a informação requerida está em microfilmes, paga-se apenas o custo do transporte ou a reprodução de documentos. A consulta aos microfilmes pode ser feita em capelas mórmons.

A expectativa de Ieda Pimenta Bernardes, diretora do Departamento de Gestão do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo, é de que o acervo dos livros de cartórios seja aproveitado por pesquisadores de várias áreas. “Os registros de imóveis podem ser úteis em estudos sobre a história da urbanização em São Paulo. Os de nascimento, em pesquisas sobre a imigração e até em filologia. Os de óbito, em estudos sobre saúde pública”, exemplifica. A maior parte das consultas, porém, deve partir de cidadãos em busca de dados sobre sua genealogia. “Esses documentos têm efeito probatório e podem comprovar direitos, podendo ser usados, por exemplo, por pessoas interessadas em obter a cidadania estrangeira”, diz Ieda.

Fichas consulares

Não é a primeira vez que o Arquivo do Estado e a organização vinculada aos mórmons fazem um convênio. Em 2014, o FamilySearch digitalizou 4 milhões de imagens, como os cartões de imigração de estrangeiros que chegaram a São Paulo entre 1902 e 1980. Esse material está disponível na internet, assim como parte de um acervo de 2 milhões de fichas consulares de qualificação que o FamilySearch digitalizou no Rio de Janeiro, por meio de um convênio com o Arquivo Nacional.

A historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, vem consultando as fichas consulares sob a guarda do Arquivo Nacional com o objetivo de completar as pesquisas para o Arquivo Virtual sobre Holocausto (arqshoah.com). Sua equipe continua em busca de judeus sobreviventes da perseguição nazista desde 1933 para gravar testemunhos sobre suas trajetórias de vida. “As fichas consulares digitalizadas fornecem informações valiosas para estas pesquisas, que extrapolam a memória individual, pois são parte da história de um genocídio único na história da humanidade. Por meio delas, é possível reconstruir as rotas de fuga, a chegada desses imigrantes no Brasil, saber se ingressaram no país como apátridas e que cônsul chancelou sua entrada, além de recuperar a data ou o navio que os trouxeram”, diz a pesquisadora. Ela prevê usos nobres para os documentos de cartórios que começam a ser digitalizados em São Paulo. “Em pesquisas sobre imigrantes, esses documentos vão permitir dizer que bens eles adquiriram no Brasil, com quem casaram, por exemplo, oferecendo dados significativos para os estudos acerca da integração e ascensão na sociedade brasileira”, afirma.


O FamilySearch atesta que seus documentos têm tido vários tipos de serventia. “Há alguns anos, fomos procurados por pesquisadores do Centro de Documentação e Pesquisa dos Domínios Portugueses da Universidade Federal do Paraná. Eles estavam interessados nos livros de nascimento de dioceses católicas do estado que havíamos digitalizado e que eram mais fáceis de consultar do que presencialmente. Perguntamos à arquidiocese se poderíamos repassar os dados e ela autorizou”, diz Mario Silva. Em outras situações, documentos perdidos foram resgatados. “Havíamos microfilmado livros de um cartório de São Luís do Paraitinga, que se perderam na enchente de 2010. Recuperamos os registros em Salt Lake City e os devolvemos para o cartório”, conta.