No
Brasil do século XIX, antes dos imigrantes, negros e trabalhadores livres já
faziam “paredes”, paralisações por melhores condições de vida e trabalho.
Por
Antonio Luigi Negro e Flávio dos Santos Gomes
Dia
ensolarado. O italiano Pascoal se aproxima do brasileiro Justino. Apelidado de
“missionário”, o italiano usava um desses chapeletes de militante socialista.
Com uma pá na mão, o operário — um negro — fez uma pausa no batente para olhar
Pascoal nos olhos, ouvindo-o atento. Gesticulando com as mãos, compensando o
sotaque carregado, o italiano viera atear fogo: criticou salários, incitou
todos a largarem o serviço e a fazer a revolução. “Você, seu Pascoal” —
argumentou Justino (também com seu sotaque próprio) — “está perdendo seu tempo.
Eu não compreendo a língua estrangeira”.
Tal
como na charge de J. Carlos (publicada na revista Careta em 1917), imprensa,
novelas e textos didáticos divulgaram para o grande público essa — fictícia —
figura do italiano anarquista. Celebravam o mito do imigrante radical, uma
fantasia em parte utópica e preconceituosa. Utópica porque os trabalhadores
europeus não eram em sua maioria rebeldes nem se sentiam italianos. Ou seja, nem
sempre eram anarquistas e tampouco se declaravam italianos. Na verdade, uma
grande parte era de origem rural, não era composta de artesãos radicais ou
trabalhadores de fábrica. Esses imigrantes não traziam consigo, em segundo
lugar, uma maciça experiência de envolvimentos com partidos, greves e
sindicatos. Havia, em acréscimo, divisões étnicas entre os imigrantes.
Consequentemente, a desconcertante conclusão de Michael Hall é a de o nascente
operariado industrial de São Paulo de origem imigrante ter contribuído para
manter a classe operária em situação relativamente fraca e desorganizada.
Muitos abraçavam identidades étnicas antes de mais nada, pois lhes assegurava
um senso imediato de comunidade. Outros eram católicos e conservadores. Também
aceitaram serviços cuja remuneração os brasileiros recusavam (1).
O mito
do imigrante radical é também um preconceito porque, entre silêncios e
esquecimentos, impede que o trabalhador local (a começar pelo escravo) apareça
como protagonista das lutas operárias. Figuras como a de Justino, que aparece
trabalhando mas é pintado como alheio à pregação inflamada do italiano radical,
personificaram o anti-herói conformista. Enquanto que Pascoal desembarca pronto
para lutar, o operariado formado em solo brasileiro deve, nessa ótica, ou
aceitar a liderança do imigrante ou ficar de fora; quase um fura-greve. Deste
modo, as imagens do trabalhador estrangeiro, branco, anarquista e rebelde,
assim como a do trabalhador brasileiro longe das lutas, não passam de uma
representação caricata do operariado do início do século XX.
Além
disso, de acordo com esse mito do imigrante radical, a paralisação coletiva do
trabalho seria algo tão inédito no Brasil que sequer haveria um termo
disponível na língua portuguesa para nomear o fenômeno. Na falta dessa palavra,
éramos obrigados a tomar de empréstimo aos franceses a palavra grève! No
entanto, a paralisação do trabalho como forma de protesto e barganha foi sempre
uma consequência tão espontânea e lógica da experiência dos trabalhadores que boa
parte das línguas europeias possui uma palavra própria para designar o
fenômeno. Assim, ingleses fazem strike. Já os espanhóis entram em huelga,
enquanto que italianos, quando param o serviço, estão em sciopero. No Brasil do
século XIX, as primeiras formas de suspensão coletiva das atividades ficaram
conhecidas como paredes. Sem essa, portanto, de um Pascoal rebelde e um Justino
que não fala o idioma da luta operária. Para nós, a emergência da classe
trabalhadora não pode estar vinculada apenas à imigração.
Quando
afinal surgiram as greves no Brasil?
Há quem
tenha indicado que a greve dos tipógrafos de 1858 foi a primeira greve do Rio
de Janeiro. Será? Sabemos hoje que, um ano antes, os trabalhadores escravizados
pertencentes ao Visconde de Mauá pararam o serviço da fábrica da Ponta d’Areia.
Esta era um dos maiores estabelecimentos da cidade, com cerca de 10 oficinas e
600 operários, sendo 150 deles escravos. Contudo, apesar de noticiada na
imprensa, não existem maiores informações sobre as reivindicações dos escravos.
Era
comum haver cativos e livres no mesmo espaço de trabalho. Dos operários
registrados nas manufaturas do Rio de Janeiro entre os anos de 1840 a 1850 — em
particular nas fábricas de vidro, papel, sabão, couros, chapéus e têxteis —,
45% eram escravos. Além disso, o recenseamento de 1872 apontou que, no Rio de
Janeiro, havia mais de 2 mil cativos empregados como trabalhadores em pequenas
fábricas.
São
várias as evidências de paralisações feitas por escravos. No final da década de
1820, cativos, africanos livres e outros trabalhadores pararam a Fábrica de
Pólvora Ipanema, controlada pela monarquia. Reivindicavam melhorias nas
condições de trabalho, incluindo diárias e dieta alimentar. No Rio de Janeiro,
em abril de 1833, um levante numa caldeiraria trouxe apreensão quando os
escravos enfrentaram a força policial, sucedendo tiros e mortes.
ACESSE NA ÍNTEGRA: