João José Reis: 'Às vezes, escravidão vira ponto de fuga'

                                                              Foto: Walter de Carvalho.  
Por Regina de Sá

Em 1985, a Unesco apresentava lista de 38 localidades com potencial para serem reconhecidas como Patrimônio da Humanidade. Naquele ano, o Centro Histórico de Salvador  ganharia a atenção global com o título dado pela Unesco. João José Reis, doutor em História pela Universidade de Minnesota (EUA) e professor do Departamento de História da Ufba, defende que o Pelourinho, antigo espaço de castigo público, poderia ganhar muito mais como local de memória se fosse criado um museu da escravidão.

No epicentro do Centro Histórico está o Pelourinho, visitado por turistas do mundo inteiro. Ali, as pessoas buscam diversão, entretenimento e compras. Para o senhor, o Pelourinho perdeu sua identidade?

Não existe identidade fixa, "autêntica", nem de indivíduos, de grupos ou lugares. O Pelourinho não é diferente. Apesar de voltado para o turismo em muitos aspectos, consegue-se ali observar muita manifestação da cultura popular, inclusive no ramo do entretenimento, o que ainda faz daquele um lugar especial. Acho positivo que os tambores do Olodum exorcizem os demônios locais, fazendo desse espaço de tortura pública - e não apenas de tortura de escravos - um ambiente de expressão da liberdade.

Por que a localidade Pelourinho deixou de possuir um pelourinho (artefato) como testemunho de um passado em que nossa sociedade submeteu seres humanos a castigos?

O "artefato" desapareceu muito antes de se ter desenvolvido uma política de memória adequada a uma sociedade mais democrática e inclusiva, que, apesar de tudo, o Brasil vem se tornando. Não acho que seria o caso de se erguer coisa do tipo no atual largo do Pelourinho porque, o local, apesar do nome, em parte descolou sua identidade desse passado, sem que, por outro lado, esse passado esteja encoberto. Outras formas de lembrança da violência na era do antigo regime escravista poderiam ser criadas, como, por exemplo, um museu da escravidão e da resistência escrava.
O senhor julga que há, nessa ausência, uma sutil intenção de nossa sociedade esconder este fato?
A Bahia já não precisa esconder essas coisas para que os ricos e poderosos continuem a mandar, a usufruir de seus privilégios e a fechar os olhos às desigualdades sociais e raciais. Estamos numa era de cinismo galopante, por um lado, mas também de alguma conquista no que diz respeito a uma compreensão mais inteira do passado.

Como as gerações futuras vão entender o que, de fato, ocorreu onde hoje existe o Pelourinho se não são mais visíveis as marcas da escravidão?

Talvez não seja correto dizer que inexistam marcas materiais da escravidão no Pelourinho, porque ali estão casas e igrejas construídas por escravos, e com os lucros da escravidão no Recôncavo e na cidade; lá estão as antigas senzalas urbanas (as chamadas lojas, subsolos dos sobrados e casas), e como contraponto uma igreja erigida por escravos e libertos para abrigar uma irmandade negra, a do Rosário dos Pretos. Não falta então "patrimônio" preservado para se pensar a escravidão. O que precisa é passar adiante essas informações.

O jornalista e escritor Laurentino Gomes, que deverá lançar em 2019 uma trilogia enfocando o tráfico de escravos no Brasil, afirmou que "a escravidão é um cadáver insepulto, um fantasma que nos assombra até hoje porque nos recusamos a encará-lo". Simbolicamente falando, é possível que ainda exista um fantasma insepulto no Largo do Pelourinho?


Laurentino poderá escrever sua versão da história da escravidão porque, nos últimos 20, 30 anos, esse é um dos temas mais estudados pela historiografia brasileira, talvez o mais estudado. Depois da publicação do livro de Laurentino, o fantasma de que ele que fala continuará nos rondando. Já se sabe o suficiente sobre a escravidão para que esse passado passe, mas ele não passará inteiramente enquanto houver o racismo e a desigualdade baseada no perfil racial.

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