NOVO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL: AVISO AOS REFORMADORES
Silvia Hunold Lara
(Depto. História -
UNICAMP)
No início de junho desse ano, o Anteprojeto de Código de Processo Civil, elaborado por uma
Comissão de Juristas que se reúne desde 2009, foi apresentado ao Senado. Na
semana passada, uma comissão foi criada para examinar as 261 páginas do
documento, com vários assuntos polêmicos. Certamente, deve haver muita discussão.
Mas há algo que precisa ser esclarecido desde já: a comissão de juristas que
elaborou o anteprojeto e o senador José Sarney, que o encaminhou ao Senado,
cometem um duplo atentado à cidadania, ao autorizarem a destruição completa da
memória do judiciário brasileiro e ignorarem demandas sociais reivindicadas há
décadas.
Sim, é disso que se trata. O artigo 967 do atual anteprojeto
repete as mesmas palavras do antigo artigo 1.215 do Código, promulgado em 1973,
que autorizava a eliminação completa dos autos findos e arquivados há mais de
cinco anos, "por incineração, destruição mecânica ou por outro meio
adequado". Em total desrespeito ao direito cidadão de preservação da
história e às regras arquivísticas mais elementares, a determinação reforça a
moda burocrática de limpar o passado. Certamente, os processos findos há cinqüenta,
cem anos não servem mais para as partes envolvidas - mas servem, e muito, para
se conhecer a história do judiciário, dos movimentos e das relações sociais no
Brasil... A determinação decreta a amnésia social e espezinha o direito que
todos temos à memória e à história.
A medida tem antecedentes
históricos. Em 1890, Rui Barbosa mandou queimar os documentos referentes aos
escravos existentes na Tesouraria da Fazenda, na tentativa de eliminar a
"nódoa da escravidão" e impedir que ex-senhores insatisfeitos com a
Abolição tivessem provas para abrir processos de indenização. A medida era
meramente prática, mas rende muitos transtornos para quem quer conhecer os
números da demografia escrava no final do século XIX. Seu ato, mesmo
aparentemente justificável para um ministro da Fazenda preocupado em proteger o
Tesouro nacional, rende-lhe até hoje a pecha de ter mandado queimar todos os
arquivos da escravidão. Há algum tempo, os historiadores conseguiram contornar parcialmente
o ato lesivo de Rui Barbosa graças ao acesso a outros documentos - em especial os
guardados pelo judiciário brasileiro. Há muitos exemplos: as ações cíveis do
século XIX incluíam freqüentemente entre suas provas os registros de
propriedade sobre os escravos, com dados importantes como idade, condição
matrimonial, ofício, etc; os litígios sobre inventários traziam documentos que
permitem aos historiadores conhecer a vida cotidiana das fazendas e engenhos daquele
período; diversos autos cíveis trataram de negociações sobre a alforria de
cativos e libertos, revelando aspectos importantes da história da liberdade em
nosso país. O uso dessa documentação, nas últimas décadas, permitiu
redimensionar a história da escravidão e tem sido utilizada cada vez mais para
conhecer a história dos trabalhadores livres e da vida cotidiana no Brasil dos
séculos XIX e XX. Valor documental similar têm os processos criminais e os da
Justiça do Trabalho - fontes preciosas que voltam a ser ameaçadas.
Sim, voltam a ser ameaçadas. Promulgado o Código do Processo Civil em
1973, a comunidade nacional e internacional de historiadores, juristas e
arquivistas, depois de muita gritaria e vários artigos em jornais e revistas
especializadas, conseguiu, em plena ditadura, suspender a vigência do tal
artigo 1.215 (lei 6.246, de 7/10/1975). O que terá levado a Comissão de
juristas a ignorar toda essa movimentação e a lei 6.246? Talvez sejam adeptos
da mencionada moda de limpeza burocrática, talvez concordem com os argumentos
aparentemente singelos (mas facilmente contestáveis) da necessidade de economia
com a redução de custos de armazenamento de papéis velhos, ou confortem-se com
cláusula que prosaicamente manda recolher aos arquivos públicos os
"documentos de valor histórico" existentes nos autos a serem eliminados.
Talvez ainda se sintam à vontade para tal ato de soberania, diante das
dificuldades muitas vezes enfrentadas por historiadores e magistrados para suspender
autorização análoga existente no âmbito da Justiça do Trabalho. Apesar das
vitórias conseguidas com a criação de memoriais e centros de documentação em vários Estados e de
numerosas resoluções aprovadas consensualmente em encontros nacionais sobre a
preservação da memória da Justiça do Trabalho, com participação expressiva de
pesquisadores, arquivistas e, principalmente, dos magistrados, milhares de
autos trabalhistas findos há mais de cinco anos têm sido destruídos, sob a
proteção da Lei 7.627, de novembro de 1987.
Rui Barbosa pelo menos lidava com
questões mais concretas. No caso do atual projeto de lei, nada justifica tal barbaridade.
Restaurar a autorização para
eliminar os processos cíveis findos, além de atentar contra o direito
constitucional de acesso à informação (nele incluída a informação histórica,
tenha ela 200, 100, 20 ou 10 anos), é também ignorar que o atual Código do Processo
Civil foi modificado em função de reivindicações de entidades culturais e daqueles
que são profissionalmente responsáveis pela preservação da memória e da
história do Brasil. O Senado tem agora o dever de corrigir esse duplo atentado
à cidadania - ou será cúmplice desse crime? Por que não aproveitar a ocasião
para mudar, inscrevendo em lei a necessidade de proteger de fato o patrimônio público nacional, do qual fazem parte os
processos judiciais (cíveis, criminais e trabalhistas)? Isso, sim, seria um bom
modo de entrar para a história! Com a palavra os Senadores.