(Foto: Marina
Silva/Arquivo CORREIO)
A falta
de casa própria sempre ameaçou a integridade do acervo do Arquivo Público da
Bahia (Apeb). Sem endereço fixo, as mudanças não tinham planejamento e, em cada
uma delas, perdas ocorriam. Um dia depois do aniversário de 132 anos do
Arquivo, comemorado no domingo (16), a história ainda se repete. Nada se sabe
sobre o futuro dele. A possibilidade de o Solar da Quinta, onde hoje os acervos
estão localizados, ser leiloado ainda existe e, mesmo após determinação
judicial, não há um plano de preservação.
Foi na
manhã do dia 7 de novembro do ano passado que o fantasma da falta de casa
voltou a rondar o Apeb. A notícia perturbou o domingo de defensores do
patrimônio histórico: o Solar da Quinta seria leiloado para quitar uma dívida
da extinta Bahiatursa, transformada em Superintendência de Fomento ao Turismo
da Bahia há sete anos. O anúncio da venda desencadeou uma avalanche de notas de
repúdio, até que o leilão foi suspenso (Veja, no fim da reportagem, linha do
tempo interativa da história do Apeb).
O Ministério
Público do Estado da Bahia (MP-BA) interveio com uma manifestação contrária à
venda e o juiz George Alves de Assis, da 3ª Vara Cível de Salvador, acolheu a suspensão por, no mínimo, 60 dias. Na decisão, o juiz apontou que, sem um
projeto de remoção do acervo, o leilão não aconteceria. Dois meses depois,
tendo o prazo ultrapassado, o MP afirmou à reportagem que ainda aguarda o
estado enviar o Plano de Salvaguarda e Remoção.
O diretor
da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, diz que o governo da Bahia manterá uma
"posição firme de que o acervo e o patrimônio devem continuar onde
estão". Para isso, completa Araújo, "nós vamos adotar todas as
medidas que forem necessárias no campo político, administrativo, jurídico, para
que isso seja assegurado". Sobre o plano, em si, não explicou.
"Com
isso, nós estamos assegurando a proteção do acervo documental, a proteção do
edifício arquitetônico, e, consequentemente, a proteção do patrimônio cultural
da Bahia. Nós não cogitamos abrir mão daquele edifício, como não cogitamos a
remoção desse acervo", afirma o diretor da fundação responsável pela
administração do Apeb.
Essa
remoção de arquivo já ocorreu, pelo menos, seis vezes - a quantidade de vezes
que o Arquivo Público mudou de sede. Primeiro, o Apeb foi acomodado na Academia
de Belas Artes, depois improvisado no Palácio do Governo e mais adiante
amontoado numa velha casa da Rua do Tesouro, no bairro do Comércio.
Ainda
houve a transferência para o Palacete Tira-Chapéu, na Rua Chile, em seguida a
mudança para o prédio onde hoje funciona a Delegacia de Defesa do Consumidor,
até que o Apeb foi acomodado no atual endereço: o Solar da Quinta, datado do
século XVI, que já serviu de abrigo para jesuítas - o Padre Antônio Vieira
escreveu lá muitos dos seus sermões e cartas - e onde também funcionou um
leprosário.
O Arquivo
foi criado em 16 de janeiro de 1890, no governo de Manuel Victorino. A ideia de
reunir o acervo histórico baiano num só lugar, na verdade, dividida opiniões -
havia políticos que achavam desnecessário juntar em um só lugar o acervo,
devido aos gastos. Venceram aqueles que defendiam a organização de um único
arquivo.
Uma dasmudanças do APEB (Urano Andrade/Biblioteca Nacional)
A mudança
para o Solar acontece em 1980. O imóvel é tombado desde 1949 pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em todas as mudanças
anteriores, perdas incalculáveis, e até desconhecidas, de acervo aconteceram.
Aos 132 anos, o Arquivo e seus defensores se preparam para um novo tempo de
incertezas.
Arquivo
Público serve aos quatro continentes do mundo
O Apeb é
a segunda maior instituição arquivística do país e está entre as maiores do
mundo. São 40 milhões de documentos que abastecem os quatro continentes do
planeta com manuscritos e impressos originais, produzidos, recebidos e
acumulados quando a cidade de Salvador se distinguiu por ser a capital
político-administrativa do Estado do Brasil, de 1549 a 1763. Se organizados de
maneira linear no chão, os documentos formariam um caminho de sete quilômetros.
Desde
2006, o historiador e pesquisador freelancer (faz pesquisas por encomenda)
Urano Andrade, 49 anos, circula da manhã ao fim do dia pelo Arquivo Público. Na
pandemia, as visitas se tornaram menos frequentes, por imposição das
circunstâncias. Se Urano precisasse calcular, perderia as contas de quantos
personagens e histórias simbólicos, mas completamente desconhecidos, ele
encontrou no arquivo. Um dos achados é a trajetória de um africano liberto que
se tornou dono de uma padaria em plena Salvador Colonial.
Acervos
são considerados "memória do mundo" (Foto: Marina SIlva/Arquivo
CORREIO)
Há também
a história da senhora que vendeu a liberdade a uma escravizada, mas exigiu o
bebê dela, ainda na barriga, em troca. Nos documentos do arquivo, Andrade
revisita a perversidade do passado.
Hoje, o
pesquisador trabalha na elaboração de três bancos de dados, todos para
universidades dos EUA. Um, para Universidade de Princeton, sobre escravizados
libertos que retornaram para o continente africano. Outro, para a Universidade
Emory, de Atlanta, em que constarão as cartas de alforria guardadas pelo Apeb.
O último, que trará os testamentos de africanos, para a Universidade de Nova
York.
"O
Arquivo Público é a história viva. Já trabalhei para América do Norte e Sul,
Ásia, muitos países", conta Urano.
A briga
judicial pelo prédio tinha começado um ano antes do início da jornada de Urano
no Arquivo. Mas a disputa começou na década anterior. O Solar da Quinta do
Tanque é, desde 1990, objeto de uma ação, movida pela TGD Arquitetos, contra a
Bahiatursa. O escritório de arquitetura alega que não foi pago por serviços que
prestados à estatal. Foi em 2005, no entanto, que a ação foi executada e a
Bahiatursa ofereceu, para penhora, o Solar. Nos corredores e salões do Arquivo,
os frequentadores pouco ou nada sabiam desses detalhes.
Durante a
pandemia, as visitas precisam ser agendadas e, por dia, são permitidas dez
delas, das 9h30 às 16h30. As preciosidades que podem ser visitadas incluem,
detalha a Fundação Pedro Calmon, por exemplo, o livro 1º de Provisões Reais
(1548), que descreve os objetos e materiais utilizados na construção da
"Cidade de São Salvador", em 1549.
Há quatro
arquivos do acervo considerados pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como memórias do mundo. São eles o
Tribunal da Relação do Estado do Brasil e da Bahia (1652-1822), Registros de Entrada de Passageiros no Porto
de Salvador (1855-1964), Cartas Régias (1648-1821) e da Companhia Empório
Industrial do Norte (1891-1973).
A lista
de documentos valiosos, no entanto, vai além. Lá, estão os registros da criação
da Faculdade de Medicina e da vinda da família real ao Brasil, em 1808, e o
acervo sobre a Revolta dos Malês, por exemplo. O acervo do Arquivo, de tão
variado, já transformou em pesquisadores até antigos funcionários.
Uma delas
é Libânia Silva, 29. A historiadora trabalhou no Arquivo entre 2010 e 2019 e,
no horário do almoço, passou a visitar os acervos da Conjuração Baiana.
"Isso me ajudou bastante. Tive oportunidade de trabalhar com pessoas que
estavam ali há 30 anos", diz.
Hoje,
Libânia cursa mestrado em Letras, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), na
área de paleografia, estudo de manuscritos históricos que é essencial para
compreensão dos documentos. Alguns destes que, no Apeb, já provocaram choros na
pesquisadora: de tristeza - como quando encontrou o documento que solicitava a
retirada de corpos esquartejados dos mártires da Conjuração Baiana - e de
emoção - pelas "letras belíssimas, resquícios de ouro, laçadas
impressionantes, tão artísticas".