A Notícia ouve o decano dos engraxates.
A indústria do lustro na Bahia. Quem fez adotar a
água.
Por certo,
a A Notícia, dando-se ares aristocráticos, só ouvisse as altas personagens da
colmeia social, desprezando os humildes, os pequenos trabalhadores que
enxameiam nos quatros cantos da cidade, não teria direito à acolhida generosa que
lhe tem dispensado o povo, o chamado Zé Povo, desde sua aparição.
E, por que
nosso propósito é palestrar, inquerir, ouvir gregos e troianos, os ditos por
nobres e os considerados plebeus, no regímen democrático que proclamamos ser o
imperante no Brasil; e porque, repetimos, é esse nosso propósito, informados de
que o Manoel, que engraxa botas na Praça 15 de Novembro, era o mais velho dos
de sua profissão, resolvemos ouvi-lo no seu posto de honra.
- Cava-se
muito Manoel?
- Nada,
esta malvada macaca da asthma não me deixa trabalhar direito.
- Mas,
sempre se faz alguma coisa, hein?
- Quando
não se faz muito, sempre se faz para o burro.
- Burro?
- Sim, carne
do sertão.
- Desde
quando, Manoel, você engraxa?
- O
senhor é de jornal?... E interviu?
- Quase.
- Pelos
meus cálculos, eu trabalho na escova e na caixa desde 1880.
Ora,
brasileiros de meu tempo foram o Victor, que hoje anda vendendo rosários
registros e outras bugigangas; Manoel, um branco, que ficava na porta da loja
Athayde, na esquina da ladeira da Montanha; um que também vendia o Alabama, e mais
dois que ficavam na porta do Banco da Bahia. Dos seis, que os éramos ao todo,
só eu continuei no ofício.
- Mas, vocês
não foram os introdutores da “indústria do lustro” na Bahia...
- Não,
foram os italianos. Todos eram meninos, e alguns deles hoje se acham estabelecidos.
Os pais ficavam nas sapatarias, fazendo o remonte. Andavam com as caixas, como
os homens do realejo, presas as costas por duas correias. Não usavam paletó. Era
a camisa de mangas arregaçadas, e o colete de veludo. As calças tinham nos
joelhos grandes contrafortes de fazenda diferente. Não vê como estas estão
remendadas? Eram assim que usávamos então. Eu fiquei com o costume.
-
Estacionavam nos pontos como vocês fazem agora?
- Não, andávamos
por toda a cidade, batendo com as escovas na caixa, a procura de quem quisesse lustrar.
E sabem como engraxávamos? Arriávamos a caixa sobre o passeio, se o havia no
lugar, ajoelhávamo-nos e assim é que limpávamos as botinas. Eu tenho nos dois
joelhos cada calo medonho! Outra coisa: nesse tempo não se usava água, era com
cuspe (que porcaria!) que se lavavam as botinas, para depois passar graxa, porque
não havia ainda a pomada. O finado doutor João Lopes foi quem me fez trabalhar
com água. Toda a vez que eu o chamava para limpar as botinas, ele gritava logo:
“Só se for com água, com cuspe não quero!” De modo que eu fui forçado a adaptar
água e, como eu, todos os outros.
- O preço
do lustro era o mesmo atual?
- Não,
três vinténs.
- Desde
1888, e lustrei as botinas dos Diretores da Faculdade doutores Rodrigues da
Silva, Alexandre de Cerqueira Pinto e Ramiro Monteiro...
- E
estudantes?
- Conheci
como estudantes os doutores Manoel Victorino, Octaviano Pimenta, Tibúrcio
Suzano, Celestino, Calazans e muitos, muitos mais, dos quais eu levaria um dia
inteiro a dizer os nomes.
- Sempre
vocês pagaram impostos?
- Não, acho
que a primeira vez que se tratou de impostos para nós foi no tempo da “Gazeta
da Tarde”, quando o professor Bahia era deputado. Luiz Tarquínio, quando foi
vereador, exigiu que a gente andasse fardado com numeração no boné. O doutor
Freire de Carvalho, quando intendente, foi quem entendeu que nós devíamos usar
estas cadeiras...
-
Recorda-se da época em que mais ganhou?
- Perfeitamente,
foi pelas festas dos chilenos.
Muito nos
já havia dito o Manoel, para a formação de uma “interviu”, pelo que resolvemos deixá-lo.
- Adeus
Manoel, leia amanhã a “A Notícia”, ultimando a palestra, dissemos-lhe.
Idalino.
Fonte: A
Notícia, 29 de dezembro de 1914
Disponível
em: memoria.bn.br