(Foto:
Mauro Akin Nassor/CORREIO)
De
grilhões a cerâmicas: escavações no Arquivo Público revelam peças históricas.
Fragmentos
foram encontrados durante preparação de terreno para construção de refeitório
Matéria: Clarissa
Pacheco / CORREIO
Fotos: Mauro Akin Nassor/CORREIO
Quatrocentos
anos de vida são suficientes para guardar muitas histórias. A Quinta dos
Padres, na Baixa de Quintas, em Salvador, guarda memórias de padres jesuítas
que viveram lá por quase dois séculos, até que fossem expulsos pelo Marquês de
Pombal. Também tem lembranças do período em que funcionou como leprosário, a
partir do final do século XVIII, e como um centro de experimentação agrícola.
Nos últimos 39 anos, tem guardado registros que contam milhares de histórias sobre
a Bahia e o Brasil, desde que passou a funcionar como o Arquivo Público do
Estado da Bahia (Apeb).
Agora, o
chão onde foi erguido o prédio do século XVI, tombado como patrimônio histórico
e cultural desde 1949, pode dizer ainda mais coisas – e, quem sabe, até trazer
novas versões sobre a vida de quem passou por ali ou pela vizinhança. É que, em
meio ao entulho retirado de uma parte do terreno, onde está sendo construído um
anexo ao Arquivo, operários da obra acharam mais do que terra e pedras: o solo
está recheado de fragmentos de peças dos séculos XVII ao XIX.
"São
cerâmicas, tem grilhões, moedas de diversos períodos, outros tipos de
ferramentas. Acredito que são objetos que datam dos séculos XVII ao XIX, mas a
pesquisa é que vai dizer melhor", explica o arquiteto e urbanista Matheus
Xavier, chefe de gabinete substituto da Superintendência do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na Bahia.
Para não
deixar que os achados arqueológicos fossem descartados junto com o entulho, os
próprios operários acionaram funcionários do Arquivo Público, que chamaram o
Iphan. Nos dias 19 e 20 de fevereiro foram contadas 128 peças, entre elas
estruturas metálicas grandes, cadeados, cachimbos, moedas. Depois, os achados
se multiplicaram. São tantos fragmentos retirados do terreno que duas mesas do
Arquivo não foram suficientes para guardá-los.
O jeito
foi empilhar o material em baldes até que uma equipe de Arqueologia inicie os
estudos sobre o material. Enquanto isso, os próprios funcionários separaram os
vestígios por tipo. Sobre uma mesa, há pedaços de azulejos que, de acordo com a
diretora do Apeb, Maria Teresa Matos, se assemelham com alguns que já faziam
parte do antigo refeitório dos jesuítas.
Outros
vestígios parecem mais recentes: há pedaços de pratos de louça, cachimbos, o
que sobrou de uma colher de metal, uma faca de mesa, um prato e uma caneca do
mesmo material. “O pessoal da obra passou a ser parceiro, mesmo. Eles separam o
que encontram, limpam e só entregam para o pessoal que trabalha lá poder
guardar”, disse um dos 500 pesquisadores que frequentam o Arquivo todo mês.
Valor
histórico
Mesmo que
o significado e a idade dos vestígios ainda sejam desconhecidos, historiadores
e arqueólogos já destacam o valor histórico dos fragmentos encontrados. “Aquele
prédio, suas paredes e cada cantinho contam histórias inimagináveis”, afirma o
professor e historiador Urano Andrade, frequentador assíduo do Arquivo Público.
Segundo ele, o Arquivo é o segundo do país em volume de documentação – são
7.360,14 metros lineares de documentos –, perdendo só para o Arquivo Nacional,
no Rio de Janeiro.
Mas,
qualitativamente, é o mais importante, porque guarda documentos do período em
que Salvador era a capital da colônia. “Da mesma forma que os documentos,
caquinhos que se encontram ali também trazem histórias de vida. Ali teve
escravos, africanos livres, muitos foram parar ali, fizeram uma greve. Tem
muita coisa ali, grilhões, cacos e a própria vida dos que viviam ali”, afirma
Urano. O Padre Antônio Vieira, por exemplo, viveu na Quinta por 17 anos – e foi
lá que escreveu muitas de suas cartas e sermões.
O
historiador Jaime Nascimento, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
(IGHB), também fala das muitas possibilidades sobre a história das peças. “É
justamente através desse material, independente do que seja, louça, prato,
garfo, talheres, que vai se ter uma ideia da vida social daquela época, como
essas pessoas viviam. Pode até dizer respeito à forma do tratamento médico para
os leprosos”, aponta.
Embora o
maior volume de fragmentos encontrados durante as escavações seja de cerâmica –
51 vestígios – também há chaves, moedas dos anos de 1768, 1826 e 1970,
revestimentos que se assemelham aos da Companhia das Índias, uma espécie de
ferrolho ou fecho de janela e até fragmentos de ossos.
“Podem
ser ossos humanos, porque o cemitério (Quinta dos Lázaros) só foi aberto
depois. Antes, tinha a casa de repouso e os padres tinham o direito de ser
enterrados lá. Pode ser também de algum interno do leprosário e pode ser de
escravos, porque os jesuítas também tinham escravos”, afirma Nascimento.
Para
Matheus Xavier, no Iphan, no entanto, a maior parte das peças é mais recente.
"A maior parte das peças são do século XIX, então possivelmente não sejam
do período da escravidão, mas vamos primeiro fazer o estudo e datar a questão
histórica", explica Xavier, que também é fiscal do convênio para as obras
no Apeb.
Para a
diretora do Apeb, Maria Teresa Matos, cabe agora à administração cuidar, além
do patrimônio documental e arquitetônico, também do acervo arqueológico
descoberto: “Para o Arquivo, nós entendemos que a descoberta desses vestígios é
extremamente significativa e, inclusive vai ao encontro das referências
históricas que nós temos em relação à Quinta do Tanque, que é considerado um
dos monumentos civis mais importantes do período colonial.
Preservação
O ideal
em situações como essa, em que vestígios arqueológicos são encontrados durante
uma obra, é embargá-la – e, no caso de bens tombados, entrar em contato com o
Iphan. É o que explica a arqueóloga Tainã Moura Alcântara, do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Ufba (MAE). No caso do Arquivo Público, as
escavações no local foram interrompidas logo depois do Carnaval, a pedido da
equipe de Arqueologia do Iphan, liderada por Alex Colfas.
Tainã
explica que é importante manter as peças onde estão. “A posição onde esse
material está no solo diz muita coisa ao arqueólogo. A gente recebe
treinamento, percebe as camadas que dizem se é do século XVII, XVIII, se está
misturado. Tudo isso, a gente só consegue dizer com o contexto preservado”, explica.
"Foram
achados muito interessantes e a gente entende que é uma coisa muito
interessante para se fazer uma pesquisa sobre isso", afirma Matheus. Ele
ainda não sabe o que será feito das peças, mas não descartou a possibilidade de
que elas sejam encaminhadas a um museu. Esse é o desejo da coordenadora de
pesquisa do Apeb, professora Rita Rosado.
A
arqueóloga Tainã Moura Alcântara chama a atenção para a possibilidade de que os
vestígios até revelem novas histórias. “Esse material arqueológico conta histórias
que podem até ser diferentes da história oficial das pessoas que estiveram aqui
antes da gente. Preservá-lo é uma questão de respeito às pessoas que viveram
antes da gente. Isso nos ajuda como sociedade a ir para a frente, também”,
afirma.
De
qualquer forma, explica a arqueóloga Tainã, uma destinação só costuma ser dada
após o estudo. “Sem o contexto, as peças, por si só, não dizem nada. São
simplesmente achados arqueológicos. Nem nos museus de arqueologia a gente faz
mais exposições que se mostre só os objetos.
A gente busca compreender aquela sociedade no seu tempo”, explica.
Trilhos,
ossada e louças são encontrados na Avenida Sete
O lado
esquerdo da centenária Avenida Sete de Setembro, no Centro de Salvador, tem
sido escavado de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. O trabalho de prospecção
arqueológica, que antecede as obras de requalificação no local, já mostram
resultados. No final desta semana, o arqueólogo responsável pela pesquisa,
Cláudio César Souza e Silva, anunciou os achados: trilhos de bondes, louças e
até uma ossada humana.
"Encontramos
também parte de estruturas, como essa argamassa vermelha, datada do século
XVIII. Os trilhos são, com certeza, do século XIX", explicou o arqueólogo.
As equipes vêm trabalhando na segunda etapa da obra, entre a as Mercês e o São
Bento. A primeira fase, já concluída, foi da Casa D’Itália às Mercês. A
terceira e última parte do trabalho será feita entre o São Bento e a Praça
Castro Alves.
O
material coletado será analisado por uma equipe de quatro arqueólogos e dois
técnicos no laboratório de Arqueologia da Universidade do Estado da Bahia
(Uneb), no campus de Senhor do Bonfim, no Centro-Norte da Bahia.
Embora
seja naturalmente um campo fértil à pesquisa do tipo, Salvador não possui
cursos de Arqueologia – e vai na contramão do restante do Nordeste.
“Salvador
tem uma potencialidade arqueológica incrível. Primeiro, porque é a primeira
capital do Brasil e ela foi construída para ser a capital. Para além disso,
Salvador tem pesquisas de que a Praça da Sé foi uma aldeia indígena anterior à
chega dos portugueses”, afirma a arqueóloga Tainã Moura Alcântara, do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Ufba.
Obras no
Arquivo custam R$ 2,3 milhões, mas não incluem climatização.
As obras
de reforma do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) começaram em dezembro
do ano passado. Além da construção de um anexo para funcionar como refeitório,
depósito e sanitários – justamente no local onde foram encontrados os
fragmentos –, também está prevista a reforma nas instalações elétrica e
hidrossanitária, a instalação de um circuito fechado de TV, a pintura geral e a
recuperação de todas as janelas, portas e reforma das esquadrias.
A
climatização dos depósitos onde ficam os documentos e também das áreas
técnicas, no entanto, não está inclusa no pacote, que tem previsão para ser
entregue em nove meses, contados a partir de dezembro passado. De acordo com a
diretora do Apeb, Maria Teresa Matos, a atual intervenção é considerada uma
terceira etapa de obras no Arquivo, mas é necessário mais investimento.
“Novos
investimentos estão sendo feitos e nós entendemos que são importantíssimos para
a preservação do patrimônio, mas também fundamentais para a preservação do
patrimônio arquivístico. Contudo, será necessário dar continuidade a outros
investimentos e nós já estamos fazendo a gestão”, afirma.
Ao longo
dos 39 anos em que o Apeb funciona na Quinta dos Padres – ou Quinta do Tanque
–, houve tentativas de retirar a documentação de lá, justamente porque a
umidade no local, onde já houve um tanque, não é propícia à preservação dos
documentos.
O cuidado
com o acervo é cobrado por pesquisadores: “É necessário um cuidado muito
especial com a documentação, porque o local não é adequado e também tem a
questão da prevenção de incêndios”, afirma o historiador Urano Andrade. O
CORREIO encontrou extintores de incêndio no prédio, mas até que haja novos
investimentos, a estratégia para manter os documentos será organizar as
estantes de modo a aproveitar a ventilação natural.
Na atual
etapa da obra também estão inclusas a iluminação externa, comunicação visual,
restauração dos elementos arquitetônicos, restauração de bens artísticos móveis
e integrados, além da recuperação de toda a estrutura e cobertura e das
instalações mecânicas.
Em
setembro do ano passado, o CORREIO mostrou a situação em que se encontrava o
Apeb: além da parede descascada, havia fios soltos. Incêndios nunca foram
registrados, mas de 2011 a 2013 o lugar, que recebe cerca de 500 pessoas por
mês, funcionou sem energia elétrica, por conta do risco de curto-circuito.
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