Luciana
da Cruz Brito
New
York City University (Graduate Center, CUNY). New York, NY, USA.
lucianacruzbrito@gmail.com
RESUMO
Este
artigo discute como o exemplo brasileiro foi debatido e apropriado por
políticos, cientistas e demais membros da elite branca estadunidense, que no
pós-abolição estava elaborando um projeto de nação que mantinha antigas
ideologias escravistas de supremacia branca e segregação racial que perduraram
no país ao longo do século XX. Na América Latina era possível avaliar os
efeitos negativos da mistura racial, e o Brasil tornou-se um exemplo de atraso
e degeneração, reforçando a necessidade de políticas segregacionistas urgentes
a serem implementadas nos Estados Unidos. A questão da mistura racial estava
atrelada à produção de uma noção de identidade nacional que se sustentava nas
ideias de pureza de sangue e em oposição às sociedades latino-americanas.
Palavras-Chave:
mistura racial; identidade nacional; Estados Unidos da América; Brasil
No ano
de 1864, ainda durante a Guerra Civil, o jornal sulista The Charleston Mercury,
um periódico da cidade de Charleston, grande centro escravista dos Estados
Unidos, publicou uma matéria que abordava o maior dos pesadelos da sociedade
norte-americana no pós-abolição: a mistura racial, recém-batizada com o nome de
miscigenação. A matéria intitulada "Miscigenação no Norte" havia sido
originalmente publicada no jornal ianque The New York Times, de ampla
circulação na região norte do país, com o título de "A que ponto nós
estamos chegando". O autor do texto chamava a atenção para um fenômeno
descrito como "anormal e detestável" que estava se tornando comum nas
ruas de Nova York, agora tomada por rostos de tez cada vez mais
"amarronzada".
A
matéria alertava os cidadãos do país para os riscos de uma prática supostamente
comum entre os abolicionistas radicais, que era o hábito de apoiarem e
influenciarem o casamento inter-racial, ameaçando assim um país "grandioso
e próspero" como os Estados Unidos. Ainda de acordo com as previsões
pessimistas do autor, por causa dessa prática, os brancos do país deixariam de
existir porque em breve, todas as famílias brancas teriam um genro negro, o que
faria todos os norte-americanos aos poucos se tornarem mulatos, afetados pela
"raça infeliz". "Adeus, um longo adeus à nossa brancura",
lamentava o autor, acreditando que algo deveria ser feito para "preservar
a pureza" de sangue.2
O tema
da mistura racial sempre foi crucial nos debates sobre nação, escravidão e
identidade nacional nos Estados Unidos. No período em que o artigo citado foi
escrito, durante a Guerra Civil, a mistura racial era tida na região sul como
uma das consequências mais nefastas da abolição. Afinal, desde a Revolução
Americana, em 1776, os Estados Unidos foram pensados por suas elites como um
país formado por homens brancos, descendentes de europeus, e que guardariam
para seu grupo os privilégios da cidadania e do pertencimento nacional. Negros,
assim como indígenas, não estariam incluídos na ideia de nação branca inventada
pelas elites do país (Fields, 1982). Portanto, a mistura racial, ao longo dos
anos, constituía-se como uma ameaça a essa ideia, desestabilizando noções raciais
fixas, mas que por vezes permitiam lugares sociais intermediários.
Em
geral, a sociedade branca norte-americana das regiões norte e sul condenava a
mistura racial. Na década de 1840 a Escola Americana de Etnologia, movimento de
cientistas do norte e do sul do país que se dedicavam a explicar e justificar
as diferenças raciais, ofereceu diversos argumentos que favoreceriam não só a
defesa do cativeiro, mas também a criação de políticas sustentadas na noção de
white supremacy. O líder desse movimento científico, o médico Samuel Morton,
utilizou o método de medição de crânios para criar uma hierarquia dos povos no
mundo, mas sobretudo nos Estados Unidos. Associando peso da massa craniana e
capacidades intelectuais, Morton concluiu que os negros ocupavam a base da
escala de evolução humana, enquanto os caucasianos representavam o topo, a
vanguarda da civilização (Stanton, 1960).
Na
região sul, onde ser negro necessariamente significava ser escravo, a cor da
pele era um importante marcador do status de homens e mulheres da região.
Portanto, a mistura racial criava um dilema no sul escravista: qual seria o
lugar de homens e mulheres que, de tão claros, passariam por brancos? Até o
início do século XIX, senhores de escravos acreditavam que a "infusão de sangue
branco" produziria escravos física e intelectualmente melhores do que
aqueles que eram "puros descendentes de africanos". Porém, com o
passar dos anos e com o crescimento do número de indivíduos considerados
mulatos, além do aumento do número de pessoas que aparentemente eram brancas
mas viviam em cativeiro, a mistura racial passou a constituir uma séria ameaça
ao sistema escravista na região sul (Tenzer, 1997, p.7-9).
A
solução para essa questão partiu de outro membro da Escola Americana de
Etnologia, o médico sulista Josiah Nott. Desde a década de 1840 ele já vinha
defendendo a importância de proibir o intercurso de negros e brancos nos
Estados Unidos. Nott afirmava que a mistura racial, na época chamada de
amalgamação, produzia um indivíduo inferior, degenerado e perigoso. Isso porque
o chamado mulato não aceitaria sua condição de escravo, ameaçando assim a
tranquilidade da sociedade branca. Nott era poligenista, assim como todos os
membros da Escola Americana, e defendia que negros e brancos eram de espécies
distintas. Por esse motivo, a mistura racial causaria também a degeneração dos
brancos, que segundo ele faziam parte de uma raça superior (Lemire, 2002, p.4;
Brito, 2014).3
Josiah
Nott compartilhava essas ideias com Louis Agassiz, cientista suíço estabelecido
nos Estados Unidos desde 1846. Embora fosse contrário à escravidão, Agassiz
concordava com Nott a respeito dos efeitos da mistura racial. Afirmava que essa
prática produzia um indivíduo degenerado e propunha que os afro-americanos
libertos fossem removidos para longe dos estados do norte dos Estados Unidos.
Mais tarde, ele passou a propor que a população negra livre fosse enviada para
o Brasil como forma de evitar que a mistura racial fosse praticada de forma
desenfreada em seu país. Agassiz empreendeu uma missão científica no Brasil,
que já vinha sendo utilizado como observatório de raças puras e mestiças. O
momento escolhido para realizar tal empreitada não foi acidental: o ano de
1863, durante a Guerra Civil, quando a questão central era a disputa pela
continuação ou pelo fim da escravidão no sul dos Estados Unidos (Machado;
Huber, 2010, p.30-33).
Portanto,
quando o jornal sulista Charleston Mercury republicou uma matéria do jornal da
região adversária, o The New York Times, refletiu esta ideia comum que
conciliava elites sulistas e nortistas: a rejeição à mistura racial. Antes da
guerra, os escravistas do sul acusavam os abolicionistas do norte de, entre
outras coisas, defender o fim da escravidão para que casamentos entre negros e
brancos fossem permitidos. Na matéria do The New York Times, podemos encontrar
a "denúncia" de que os abolicionistas brancos estavam dispostos a se
casar com negros para provar sua crença na igualdade racial. Nessa perspectiva,
a combinação mais temida nas uniões entre negros e brancos era aquela na qual a
mulher branca se casava com um homem negro (Lemire, 2002, p.84-97).
Notícias
sobre filhas de abolicionistas brancos que se casavam com negros no norte eram
muito comuns na imprensa sulista. Um exemplo foi o casamento de Sarah Judson,
cuja história foi publicada no jornal Memphis Daily Appeal em 1859 e que,
segundo o autor, "era de revirar o estômago de qualquer branco". A
noiva, filha de um "abolicionista radical", foi induzida pelo pai a
se casar com um homem negro "contrariando os desígnios da natureza".4
De
acordo com a historiadora Martha Hodes, foi durante e após a Guerra Civil que
as relações sexo-afetivas entre negros e brancos passaram a ser menos toleradas
nos Estados Unidos, sobretudo nas relações em que a mulher pertencia à
"raça branca". Com o aproximar-se da Guerra, quando a escravidão
estava mais ameaçada, os filhos de mães brancas e pais negros desestabilizavam
ainda mais o sistema escravista, uma vez que que a condição da mãe definia o
status da prole. Esse não era o caso das relações entre homens brancos e
mulheres negras, muitas vezes resultado da violência sexual e/ou coerção, que
retroalimentavam o sistema escravista, uma vez que a mulher negra produzia
indivíduos escravizados (Hodes, 1997).
A
década de 1860 foi um período de ansiedade em torno do tema da mistura racial,
sobretudo após o decreto da abolição da escravidão nos estados do sul e a
reeleição de Lincoln, o que ocorreu entre 1863 e 1864. Esses fatos
influenciaram os debates sobre as políticas futuras a respeito do status dos
libertos no norte e no sul dos Estados Unidos. Esses debates também buscavam
justificar argumentos mobilizando as teses científicas produzidas pela Escola
Americana de Etnologia na década de 1850. Várias questões foram levantadas no
pós-abolição: os libertos seriam inseridos na sociedade com os mesmos direitos
que os brancos? A abolição seria seguida de um projeto de igualdade racial? A
abolição significaria o fim do racismo? Como garantir que os libertos
continuassem trabalhando, inclusive para seus ex-senhores? Como garantir a
supremacia dos brancos? Ao mesmo tempo em que tais questões foram colocadas por
escravistas e até mesmo por abolicionistas moderados, a comunidade negra do
país mostrava-se esperançosa com o futuro. Os libertos do norte apostavam na
igualdade de direitos, sobretudo no direito ao voto e no fim dos espaços
segregados (Holt, 2010).
Durante
a campanha eleitoral de 1863, os democratas (defensores da escravidão) tentaram
associar a prática da miscigenação à imagem do presidente Lincoln, que era
candidato à reeleição pelo partido republicano. Quando Lincoln decretou o fim
da escravidão nos estados do sul em 1863, a lei foi ignorada pelos senhores de
escravos daquela região. Isso bastou para que o presidente fosse acusado de
liderar uma "cruzada" a favor dos negros e de ser um apoiador do
casamento entre negros e brancos. Lincoln havia afirmado, anos antes, que não
acreditava na igualdade racial, e via a ideia de casamento inter-racial como
naturalmente repugnante (Lemire, 2002; Kaplan, 1949).
Foi
assim que naquele ano os democratas lançaram mão de uma estratégia que tinha
por objetivo vincular de vez a imagem do presidente Lincoln à prática de
amalgamação. No calor da campanha eleitoral, dois jornalistas democratas, David
Goodman Croly e George Wakeman, lançaram um panfleto chamado
"Miscigenação: a teoria da mistura de raças aplicada ao homem branco
americano e o negro". O folheto era falso, e a intenção dos autores, então
anônimos, era deixar a impressão de ter sido escrito por republicanos
abolicionistas radicais, apoiadores de Lincoln e dos casamentos inter-raciais.
O texto teve grande repercussão na região norte, onde estava a maioria dos
eleitores do presidente, mexendo com a opinião pública aterrorizada com as
ideias defendidas pelo panfleto, que promovia a mistura racial como algo
praticado entre as nações mais avançadas do mundo. O texto também apontava o
mestiço como o povo do futuro, uma visão pouco comum nos Estados Unidos,
afirmando que as raças mestiças eram superiores e assim contrariando a
justificativa central da superioridade branca: a pureza racial (Lemire, 2002,
p.116; Fredrickson, 1971, p.171-174).
O
panfleto criou o termo miscigenação, que dali por diante seria empregado para
designar a mistura entre pessoas de raças diferentes. Além disso, a publicação
também atraiu a atenção da opinião pública porque abordava diretamente o tema
dos casamentos entre pessoas negras e brancas, assunto que causava reações no
norte dos Estados Unidos sempre que a abolição era debatida. Nos anos 1860 a
mistura racial já era completamente condenada na região sul, porque naquele
momento tratava do possível envolvimento de negros libertos e brancos pobres, o
que contrariava regras raciais impostas durante a escravidão. Na região norte,
de forma análoga, a miscigenação racial também era condenada, e o panfleto
também gerou reações negativas, até mesmo alguns abolicionistas acreditaram que
o texto era um manifesto pró-miscigenação. Mesmo falso, o panfleto
"Miscigenação..." ganhava veracidade porque utilizava uma linguagem
científica. Além disso, para exemplificar os supostos benefícios da mistura
racial os autores fizeram amplo uso de representações da América Latina. Esta
era uma forma de fazer os leitores estadunidenses visualizarem também o seu
país como uma sociedade "mestiça".
Percebemos
o uso da América Latina no capítulo "Superioridade das raças mistas".
Os autores afirmavam que as raças mestiças eram mental, física e moralmente
superiores àquelas raças puras ou que não se haviam misturado, e traziam o
exemplo dos sambos da América do Sul, descendentes de índios e negros. Mais uma
vez, o Brasil não poderia deixar de ser citado como exemplo de país onde o povo
era miscigenado, colaborando para a consolidação da ideia da mestiçagem neste
país.
Os
cafuzos no Brasil, uma mistura de indígenas e negros, são mencionados pelos
viajantes como um tipo esguio e musculoso, e com um cabelo excessivamente longo
que é meio encaracolado especialmente nas pontas e cresce perpendicularmente da
testa até a altura de um pé ou um pé e meio. Isso forma uma cabeleira muito
bonita, que é um resultado da mistura do cabelo carapinho do negro com o cabelo
pesado e longo do índio.5
Ainda
que sob pretensões falsas, o panfleto divulgava a imagem do brasileiro como um
tipo perfeito, o belo resultado da mistura racial vigente naquela sociedade.
Essa imagem positiva do dito mulato nutria as fantasias, ou melhor, os temores
da sociedade estadunidense que via o Brasil, assim como outros países
latino-americanos, como um antiexemplo do seu projeto de nação. Essa
representação do tipo brasileiro também cumpria outro papel no movimento
abolicionista negro. Os abolicionistas afro-americanos viam no povo brasileiro
miscigenado uma referência na sua luta por integração e igualdade racial. Para
eles, mistura racial significava ausência de preconceito, o que fazia do
Império um exemplo importante quando precisavam convencer seus compatriotas
tanto da possibilidade de convívio entre negros e brancos de maneira
igualitária quanto das potencialidades de negros e mestiços (Brito, 2014).
Nortistas
e sulistas, a despeito da rivalidade provocada pela Guerra Civil, concordavam
em que os libertos não poderiam viver em condição de igualdade em relação à
população branca. A ideia de mistura racial causava verdadeira repugnância
entre os nortistas e era tida como algo contrário às leis naturais, o que fez o
tema do casamento inter-racial tomar uma proporção importante na eleição de
1864. Ainda naquele ano, uma série de caricaturas foram feitas para ilustrar a
miscigenação como resultado da eleição do presidente. Charges foram amplamente
divulgadas na imprensa antiabolicionista após a vitória eleitoral de Abraham
Lincoln, que seria responsabilizado pelos seus opositores por promover a
mistura de raças nos Estados Unidos após ter abolido a escravidão (Lemire,
2002, p.115-116).
Uma
dessas caricaturas teve como tema um baile, o Baile da Miscigenação, que
acontecia na sede da campanha eleitoral de Lincoln (Figura 1). A festa
representava uma completa inversão da ordem: brancos e negros, agora libertos,
celebravam juntos sem obedecer às regras de decoro racial. As mulheres negras,
com características animalizadas e formas voluptuosas, seduziam homens brancos
que eram atraídos pelos seus instintos sexuais. Aliás, a representação das
mulheres negras era a própria descrição do que a ciência dizia sobre elas:
corporeidade excessiva e sexualidade desenfreada. A charge buscava representar
a quebra de controle dos corpos femininos negros e os excessos causados pela
abolição.
ACESSE NA ÍNTEGRA: