Editorial
Antonio
Luigi Negro
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, BA, Brasil. rbh@anpuh.br
Neste
primeiro exemplar de 2016, assumindo a sua nova periodicidade (agora
quadrimestral), a Revista Brasileira de História (RBH) vem a público em
conjuntura grave e delicada. Não por acaso, este número 71 intitula-se "Lembrai-vos
de 1964". Em primeiro lugar, como se verá, os artigos aqui reunidos
justificam-no. E, claro, o afastamento da presidenta Dilma do exercício do
poder para o qual foi eleita conecta-se, inevitavelmente, ao Congresso Nacional
votando a vacância da Presidência, em 1964 (sob, aliás, os protestos de
Tancredo Neves). Em editorial a 31 de março de 1964, o Correio da Manhã afirmou
existir apenas uma palavra a dizer ao presidente João Goulart: um sonoro
"saia!". Roberto Marinho, assim como outros barões da imprensa,
engrossaram o coro. Militares e civis tomaram o poder, disseram que iam debelar
a crise econômica e deter a inflação. Prometeram respeitar as eleições
presidenciais previstas para 1965 (nunca acontecidas). O restabelecimento da
ordem traria de volta os investimentos externos, garantiram. Já o governador da
Guanabara Carlos Lacerda foi festejado como virtual futuro presidente eleito,
nas ruas de Copacabana. Se alguém duvidava sobre o consórcio entre civis e
militares no Golpe de 64, terá visto no Brasil de hoje, assim como nas nuvens
da internet, que civis e militares são uma aliança possível e recorrente. Esse
debate historiográfico, que a RBH já publicou, está na ordem do dia.
Da
intolerância ao elogio do torturador, vimos uma fila de centenas de homens (e
mulheres) pronunciar-se em nome da - própria - família como esteio para o voto
a favor do impeachment da presidenta Dilma. Oitenta anos depois da primeira
edição de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, os congressistas
elegeram seus familiares como pressuposto central para tomar decisões
políticas. Dada a mentalidade patriarcal que, até hoje, vigora em suas
atitudes, ignoram ativamente que há, por definição, descontinuidade e inclusive
oposição entre família (privado) e o Estado (público). O Estado, ensina o
autor, é a transgressão da ordem doméstica, e é por esse modo que a cidadania
se constitui. Gilberto Freyre, talvez, será autor talvez banido pela escola sem
partido. Foi no escravo negro, escreveu ele em Sobrados e Mocambos, que mais
ostensivamente desabrochou o sentido de solidariedade mais largo que o de
família sob a forma de sentimento de raça e, ao mesmo tempo, de classe, na
defesa, não de uma raça aparteada, mas dos direitos do trabalhador. Em seu
desprezo por tudo que lhes é diverso (gente honesta, trabalhadores, mulheres
donas do seu nariz, índios e negros, LGBT), jamais irão entender que o escravo
tem importância histórica máxima.
A RBH,
por sua vez, ao somar o sistema em rede de submissões de textos à publicação
avançada de artigos, sendo também um periódico aberto (ou seja, é livre o ato
de ler ou baixar artigos), vem para alimentar o fluxo contínuo da socialização
e avaliação do conhecimento científico. Em acréscimo, dado o número de
colaborações espontâneas a nós enviadas para avaliação às cegas por pares, a
RBH não pautou novos dossiês após decidir-se pela periodicidade quadrimestral.
Ao mesmo tempo, tem sido nosso cotidiano a atitude de agilizar o procedimento
de receber textos, distribuir a pares, comunicar resultados, revisar, traduzir
para o inglês, diagramar e converter artigos para a plataforma XML. E é só aí
que podem ser remetidos à Scielo para publicação.
Montado
a partir da publicação avançada de artigos, este número se compôs
gradativamente. Ao ser fechado, formou-se com oito artigos e cinco resenhas.
Seu primeiro artigo, de Matheus Figuinha, sobre o monasticismo de Martinho de
Tours e as aristocracias na Gália, é um refinado exercício que examina a
confiabilidade de fontes para a interpretação do seu objeto. Sem encontrar
indícios claros para corroborá-la, o autor recomenda cautela no seu manuseio;
lição preciosa da pesquisa histórica.
De
autoria de Fernanda Pandolfi, o segundo artigo, sobre viagem de Pedro I à
província de Minas Gerais em 1831, focaliza as interações entre as elites
políticas locais e o poder central. O trabalho sugere que o aumento da
impopularidade de D. Pedro I, após tal viagem, e sua subsequente abdicação,
resultaram muito mais de circunstâncias advindas do aprofundamento da
implementação da monarquia constitucional do que propriamente de seu suposto
caráter absolutista e antinacional.
"'É
o doutor que vem aí!': guardas sanitários, relações de trabalho e formação de
identidade", de José Roberto F. Reis, se debruça sobre os trabalhadores da
saúde atuantes nas décadas de 1930 e 1940 com o propósito de problematizar e
investigar aspectos relevantes relacionados à sua identidade e à sua experiência
profissional.
A
rigor, os artigos de Clifford Welch, Carlos Esteve, Marcus Dezemone e Felipe
Loureiro poderiam constituir um dossiê sobre o trabalhismo ou o governo
Goulart. Fundamentam o título deste número da RBH e constituem, somados ou
individualmente, contribuição inédita e original sobre os trabalhadores e a
questão agrária, abordando a relação de Getúlio Vargas com a vida rural, sobre
posseiros em Goiás, sobre a polêmica lei de remessa de lucros e, por fim, sobre
a questão agrária e a derrubada de Jango. São artigos de grande atualidade:
direitos trabalhistas no campo, conflitos de terra, empresariado nacional e
estrangeiro e complô político.
"Heróis
e cultura histórica entre estudantes no Chile" é outro artigo de visível
atualidade para qualquer país em cujas escolas e universidades estudam jovens
formados em tempos democráticos e distantes do culto a sábios homens brancos.
Fabián Calderón, Luis Cerri e Ademir Rosso analisam como estudantes das escolas
básicas percebem as imagens dos próceres que personificam a identidade
nacional. Se O'Higgins aparece no núcleo central, modificações no significado
de herói apontam para Violeta Parra.
Concluindo,
a RBH deseja agradecer a todo o pessoal envolvido com seu trabalho,
profissional ou voluntário, sua energia e boa vontade. Pablo Serrano e Deivison
Amaral concorreram positivamente como assistentes editoriais; com entusiasmo e
afinco diários. Armando Olivetti, Eoin O'Neill, Flavio Peralta e Roberta
Accurso prestaram serviços profissionais de grande qualidade.
Ficam
aqui gravados os agradecimentos ao CNPq e ao Programa de Pós-Graduação em
História, Cultura e Práticas Sociais da Universidade do Estado da Bahia
(PPGHCPS-UNEB).
ACESSE A FONTE:
ACESSE A REVISTA: