O arquivo
não é uma nota; não foi composto para surpreender, agradar ou informar, mas
para servir a uma polícia que vigia e reprime. É a coleta de palavras
(falsificada ou não, verídica ou não – esse é um outro problema), cujos
autores, coagidos pelo fato, jamais imaginaram que pronunciariam um dia. [...]
vestígio bruto de vidas que não pediam absolutamente para ser contadas dessa
maneira, e que foram coagidas a isso porque um dia se confrontaram com as
realidades da polícia e da repressão. Fossem vítimas, querelantes, suspeitos ou
delinquentes, nenhum deles se imaginava nessa situação de ter de explicar, de
reclamar, justificar-se diante de uma polícia pouco afável. Suas palavras são
consignadas uma vez ocorrido o fato, e ainda que, no momento, elas tenham uma
estratégia, não obedecem à mesma operação intelectual do impresso. Revelam o
que jamais teria sido exposto não fosse a ocorrência de um fato social
perturbador. De certo modo, revelam um não dito. [1]
Autos
criminais seguem o ritmo de outros documentos que ficam para a história: “a sua
natureza essencialmente lacunar – ‘o arquivo não é um stock de que se
retirariam coisas por prazer; ele é constantemente uma falta’ – e até, por
vezes, ‘a impotência de não saber o que fazer deles’”. [2] Mas podemos acrescentar,
ao tratarmos de fontes judiciárias, que elas têm a capacidade de evidenciar
ambiguidades no âmbito de sistemas escravistas.
Autos
criminais, cíveis e tantos outros permitem à historiografia brasileira
documentar amplamente lutas, enfrentamentos, desobediências cotidianas. A
resistência tem sido uma importante resposta às mais variadas formas de
opressão. Trazer a história de Vicente e seus parceiros para uma revista
extramuros acadêmicos é ampliar o conhecimento desse fato, que (oxalá) nada
mais terá de amnésico. [3]
A
história de Vicente começa com a sua fuga de uma fazenda em Casa Branca, sertão
da província de São Paulo, numa época em que o tráfico interprovincial de
escravizados estava em alta e os preços de cativos caminhavam na mesma direção.
A fazenda pertencia a Benedicto Ferreira, um senhor de Campinas-SP, que, por
certo, se aborreceu diante da situação. Na sua bem-sucedida fuga, Vicente
retornou a Caetité-BA e aquilombou-se em Bonito, atual Igaporã-BA.
De
imediato nos perguntamos como Vicente conseguiu tal proeza. Algumas comparações
podem ajudar. Na mesma Campinas, cerca de sete anos antes da fuga de Vicente,
no dia 5 de dezembro de 1872, “às 6 horas da manhã mais ou menos”, Manoel,
escravizado, natural do Ceará, também evadira: “[...] agora sabe-se com certeza
que elle se dirigiu para a Província de Cuyabá ou Goiás; tendo-se agregado a
uma tropa que para ali se dirigia”. Manoel fugiu sob a acusação de assassinato
de João da Silva Ferreira, administrador da fazenda Funil e filho do senhor de
Manoel. Assim como Vicente e Manoel, escravizados buscaram tropas para escapar
ao cativeiro em terras alheias. Fugas intensificadas por ocasião do tráfico
interprovincial. Vicente e Manoel, baiano e cearense, respectivamente, são
representativos de muita gente escravizada transportada compulsoriamente das
províncias do Norte para as temidas matas do café nas províncias do Sul. As
tropas apareciam para escravizados fugitivos como um meio mais seguro e
eficiente, haja vista o conhecimento dos caminhos e a chance de apoios diretos
ou indiretos. E isso implicava em acordos prévios com trabalhadores das tropas,
sejam estes livres ou escravizados. [4]
Ao que
tudo indica, Vicente Caetano de Brito foi negociado no sertão da Bahia para São
Paulo em finais dos anos 1870. Passamos a conhecer um pouco mais da sua
história com processos criminais que registram aquilo que Arlette Farge
sabiamente denomina de “um fato social perturbador”.
No dia
três de dezembro de 1886, Vicente foi preso, qualificado e inquirido pela Justiça
em Caetité, sob a acusação de assassinato. Disse em seu depoimento: “[...] veio
de São Paulo, a sete anos pouco mais ou menos”, que era “lavrador e carpina”.
Questionado sobre a acusação de assassinato – unânime entre as testemunhas –
afirmou “[...] que atribui ser por ter elle réo andado sempre ocultamente [...]
que tem prova com todos os moradores do Bonito, e principalmente com os seos
ex-senhores Joaquim Caetano Villas e o Capitão Júlio Bernardes de Brito, em
cuja companhia estava trabalhando quando se deo a morte de José”. [5]
Vicente e
José lutaram de modo pertinaz pela liberdade. Uma luta que transformou antigos amigos
em algozes, gerando perdas para ambos. Os acontecimentos que marcaram essas
lutas somam-se aos depoimentos de testemunhas: “[...] que sabendo vir o réo
presente em companhia de seo marido, dito José, pedira ella ao réo que não o
matasse em caminho, porque receiava que elle assim o fizesse visto como todos
sabem ser elle um malvado”. [7] Vicente, considerado pelas testemunhas
“malvado”, e José, “bem insinado”, eram amigos. Tanto que, na noite anterior à
morte de José, Vicente o ajudara na contagem do dinheiro, na confecção da
capanga de couro que havia “cosido no bolso delle José”.
O corpo
de José foi encontrado pelos “camaradas” da casa de seu senhor, no
despenhadeiro das “Trez Passagens”. Desconfiaram pelo “[...] grande fedor de
animal morto” e considerando que “[...] o referido escravo, [não] sendo certo
da vista, poderia ter se abysmado no despenhadeiro. [...] Seguirão e voltarão
trazendo o chapéo do referido escravo, facão do mesmo, um saco com baitata e
cebôlas, e mais uma toalha com uma banda de rapaduras”. [8]
O
reconhecimento dos pertences de José revela uma vida social de grande
proximidade:
[...] por
ser voz geral que depois da morte de José, o réo presente appareceo dispondo de
quantia que por certo seria do assassinado José, por quanto elle testemunha
conheceo perfeitamente uma cédula de vinte mil réis, por haver nella encontrado
um signal ainda em mão de Atilio Fagundes de Brito, que com esse dinheiro havia
pago a José Crioulo umas rezes que comprou ao mesmo José. [9]
A capanga
de José era “[...] conhecida por muitas pessoas que virão em mão do
denunciado”. Também disseram que, depois do ocorrido, Vicente “[...] appareceo
com dinheiro fazendo compras, inclusive de uma casinha”. O sapateiro Cezar
Alves Moreira, de 19 anos, disse que “[...] vira o réo presente com a mesma
capanga de José”. [10]
Consta no
processo criminal de 1885 que José havia “[...] vendido um gado que possuía
para com o resultado pecuniário tratar de sua liberdade”. José vendeu reses.
Como as adquiriu? Ao que tudo indica, o sistema de sorte (ou giz) estendia-se a
escravizados. [11]
Vicente
encontrava-se preso em 1892, sentenciado “no grau máximo do art. 359 do Código
Criminal”, [12] quando o seu pedido de apelação foi negado. Não ficam bem
claros os percursos de Vicente nesses autos, no entanto é possível acrescentar
referências ao acompanhar a sua trajetória noutra acusação, em processo
criminal anterior, como veremos adiante.
Antes, é
preciso compreender porque, no depoimento de três de dezembro de 1886, Vicente
considerou que a acusação lhe recaía por “[...] ter elle réo andado sempre
ocultamente”. Essa questão somente é esclarecida em processo criminal anterior,
de 13 de junho de 1881, no qual o escravo Vicente fora acusado pela morte da
“liberta Luzia”. [13]
Nos autos
de 13 de junho de 1881, consta que Vicente, natural de Caetité, estava com 24
anos de idade e pertencia a Benedicto Ferreira, um senhor de Campinas,
província de São Paulo. Segundo o Promotor Público da Comarca, Vicente fugira e
teria se aquilombado nos arredores do arraial do Bonito (atual Igaporã,
província da Bahia). Nesses autos, Vicente fora acusado pelo assassinato da
liberta Luzia, “[...] às 10 horas da noite, em sua caza”, [14] na vila de
Caetité: primeiro a teria espancado e depois disparado um tiro, “[...] de que
morréo incontinente”. O promotor, que relatou “o ocorrido” no inquérito, tomou
iniciativas imediatas. Pediu prontamente ao juiz da Comarca de Caetité, “[...]
que se sirva de mandar proceder a formação da culpa, passando-se mandado de
prizão contra o denunciado, e formando-se força para captura delle e de todos
os mais que forem encontrados no quilombo”. [15]
O
promotor público solicitou ainda, ao mesmo juiz, que o réu fosse enquadrado no
art. 192 do Código Criminal, “[...] por ter-se verificado a circunstância
qualificativa do artigo 16 parágrafo 14 do mesmo código, em grau médio (galés
perpétuas)”.
No
depoimento das testemunhas, Vicente foi também acusado de praticar furtos nas
fazendas da vizinhança, fato que não negou em seu depoimento. Disse viver,
[...] de
comer criações do Senhor Julio Bernardo de Britto, do Senhor Alferes Joaquim
Caetano Villas Boas, do Senhor Tenente Landisláo Jozé da Cunha, do Senhor
Constantino Chaves, do Senhor Alferes Antonio Pinheiro, e do Senhor Galdino
Cardoso de Souza. [16]
Quando
questionado sobre os cativos que viviam no quilombo, acrescentou que “[...]
tinha trez mulheres, sendo duas de nomes Bernardina e Maximiniana e os escravos
Cyro do Senhor Polycarpo Xavier de Azevedo, Victor do senhor Doutor Fraga e
Cypriano do Tenente Landislao”. Seguiu o seu depoimento discorrendo sobre
furtos e repasses que realizava com seus parceiros de quilombo e também com
outros cativos na região. Vicente expôs essa trajetória com riqueza de detalhes,
[...]
Disse que elle com Severiano carregarão arrôes do Senhor Ernesto de Brito para
o que já Severiano havia arrombado a porta e janella da caza onde estava o
arrôz. Disse que foi chamado por Severiano para furtarem um porco no quintal do
Senhor Silvestre, e que chegando lá furtarão uma trouxa de roupa pertencente ao
mesmo Silvestre; havia promessa de Severiano quando houvesse sal de lhe dar um
bôi manso da Gameleira do Tenente Vicente Pinheiro para ser morto para o
quilombo. Disse que fazia furtos de mandioca da roça do Tenente Ladislao elle
com Severiano e na mesma roça vio por vezes o Roberto do José Pereira, tambem
furtando; disse que Severiano tornou-se contra elle por cauza de um dinheiro
que o mesmo lhe ficou devendo e não quiz pagar. Com o mesmo Severiano furtarão
uma porca do Senhor Alferes Joaquim Caetano e que foi visto neste dia pelo
Senhor Joaquim Borges. [...] Disse mais que quanto a morte de Luzia de tal, que
imputavão a elle, que não foi elle, pois em a noite que matarão elle estava na
Gameleira onde foi robar do escravo Athanasio e ahi matou uma ovelha. E nada
mais respondeo nem lhe foi perguntado [...][17]
Ao falar
das criações e produção local e explicitar um dinamismo muito próprio ao
quilombo, que fabricava farinha e negociava com a vila a produção e os bens
furtados, iluminou amplos aspectos da vida cotidiana sertaneja. Trouxe ainda
ligações mantidas entre trabalhadores livres e escravizados e demonstrou o
repasse realizado por escravizados que adquiriam pólvora, chumbo e bala (também
na vila), produtos proibidos à venda para cativos. Consta nos autos o registro
de que Luzia frequentava o quilombo, assim como outros escravizados e
trabalhadores livres.
No
depoimento de Vicente aparecem articulações entre escravos do quilombo e
pequenos comerciantes do arraial do Bonito (atual Igaporã). Embora (e
estranhamente) não tenha sido chamado a depor nos autos de 1881, Severiano foi
mencionado por Vicente, no seu minucioso depoimento, como principal articulador
dessas relações:
[...] a
farinha feita no quilombo erão dispostas neste arraial pelo Severiano o qual
ficou com o couro e as criações alli matadas [...] quando não hia Severiano ao
quilombo mandava sua caseira Candinha [...] elle fornecia a Honório farinha,
carne, mandioca, e o dito Honório também freqüentava o quilombo [...] Disse que
com Severiano furtou um capado do Senhor Alferes Jozé Caetano Villas Boas [...]
Severiano e Honório dispunha dos couros e das creações e comprava pólvora,
chumbo e ballas para elle Vicente. [18]
É
possível supor que Severiano fosse o mediador das negociações entre
aquilombados e senhores locais, fator que lhe serviu de proteção até mesmo
perante a Justiça. Os depoimentos, em sua maioria, falam ainda de um escravo
por nome Martinho, visto na casa de Luzia logo após o crime, que a todos contou
ter assistido ao assassinato, mas não reconheceu o responsável, “[...] pelo
escuro da noite”. Deve-se considerar que se tratava de uma pequena vila, onde
deveria “correr”, por todos os lados, conversas sobre os recorrentes furtos
praticados por Vicente, dando margem à “população do lugar”, principalmente aos
senhores da região, afastá-lo da circulação na vila e arredores.
A liberta
Luzia pareceu não ser bem quista pela vizinhança da vila: “[...] Luzia tivera,
três dias antes do crime, uma dúvida com Ana Maria, amazia de Bernardino Rego”.
Outra testemunha, quando questionada se Luzia tinha alguma malquerença, disse
que “[...] algumas pessoas queixavam della”; noutro depoimento, um vizinho
disse que “tinha algumas mulheres na rua que prometião de dar nella Luzia”.
[19]
Apesar de
aparecer nos depoimentos indicações de intrigas de Luzia com mulheres da
vizinhança, que inclusive a ameaçavam, o escravo Vicente foi incriminado, mesmo
negando a sua participação no crime e atribuindo aquela acusação “[...] ao ódio
particular que lhe vota toda a população do lugar”. Teria Vicente assassinado
Luzia? Talvez jamais possamos nos certificar. Os processos, quando trazem uma
acusação dessa natureza, apresentam a ambiguidade de vozes dissonantes e
dificilmente, mesmo com apurada leitura, é possível concluir com segurança.
Ainda é preciso dizer que interessa ao pesquisador contemporâneo a
reconstituição de contextos, o que nos desloca e desobriga das ilusões de um
suposto “resgate do que realmente aconteceu”.
Trajetórias
semelhantes à de Vicente recolocam a importância de processos criminais como
fonte da história, especialmente quando o tema de estudos se dirige a
experiências sociais de escravizados e forros. Nota-se, prima facie, que apesar
do cativo não ser “reconhecido” nos Tribunais, isto é, ser considerado
juridicamente incapaz, também nesse espaço a sua situação foi ambivalente. Ali,
queira ou não, a Justiça, “[...] teve de reconhecer a capacidade de ação dos
escravos, colher seus depoimentos e interrogá-los, julgá-los e puni-los por
seus atos e iniciativas”. [20]
Podemos,
no entanto, afirmar que as ações de Vicente feriram normatizações daquela sociedade,
romperam com a ordem, ao tempo em que colocaram em xeque a propriedade
legitimadora da sociedade escravocrata: vimos até aqui um escravo fugitivo,
aquilombado, praticante de furtos e, por fim, acusado de assassinato.
No
encaminhamento final dos autos, o curador (espécie de advogado) de Vicente
apelou para o Tribunal da Relação, em Salvador, capital da Província, mas não
foi possível verificar se houve comutação da pena. Na pronúncia da sentença
final, Vicente foi condenado e incurso no art. 192 do Código Criminal (já
referido).
Os autos
permitem identificar redes de contato de escravizados “aquilombados” com gente
da região para a realização de pequenos negócios. [21] Esses pequenos negócios,
que auferiam ganhos a escravizados do sertão, se diferenciavam daqueles
conquistados em cidades como Salvador ou Rio de Janeiro. [22] É certo que, em
ambos os casos, escravizados amealhavam a sobrevivência em conformidade com
perfis de economias locais. No caso do sertão, como essa economia se dirigia
para os trabalhos no campo, foi principalmente dali que cativos buscaram reunir
pecúlio para alforrias. Dificilmente senhores do sertão poderiam prover o
sustento de todos os seus escravos e camaradas, também, por isso, era
necessário tornar mais flexível o acesso aos meios de subsistência. Nessa
medida, ampliavam-se as margens de negociação entre escravizados e senhores.
Essa condição revela-se essencial para compreendermos de que modo, desde a
escravidão, cativos e forros interagiram na microeconomia regional, organizaram
e improvisaram a sobrevivência cotidiana, e constituíram laços que os impeliram
a permanecer na região no pós-abolição.
De outro
lado, processos criminais semelhantes àquele que envolveu Vicente confirmam as
considerações traçadas pela historiadora Maria Cristina Wissenbach quanto às
ações de escravizados consideradas pelas autoridades judiciais como furtos:
[...] os
inquéritos relativos a tais crimes demonstram a presença de receptadores –
alianças fundamentais na destinação dos produtos do roubo e, portanto na
consumação dos crimes – e que depõe sobre a larga rede de agentes vinculados à
economia informal, realizada na base de barganhas, trocas e empréstimos [...]
aos olhos dos poderes públicos, a preocupação concentrava-se nos graus de aderência
entre escravos e homens livres, presentes nessas práticas que, constantemente,
oneravam os moradores da cidade. [23]
A
trajetória de Vicente também nos lembra uma situação já acentuada pela
brasilianista Mary Karasch: “[...] muitos escravos rebeldes nem pensavam no
processo de alforria, preferindo ‘libertar-se’ por meio da fuga”. [24] Faça-se
a ressalva de que, enquanto muitos encontravam “sua liberdade nas florestas”,
Vicente quis vivê-la em meio a seus amigos e parentes, no arraial do Bonito,
próximo a Caetité, de “onde era natural”. De certo que, para Vicente, o seu
retorno à “terra natal” mostrava-se bem mais vantajoso, haja vista que poderia
contar com o apoio de amigos, parentes, outros cativos e forros, homens livres
e mesmo de senhores locais, como vimos. Apesar de todas as mazelas de uma fuga
longa e difícil, foi bem menos complicado para escravizados como Vicente
readaptarem-se ao antigo lar do que se ajustarem às novas condições de vida das
províncias distantes.
Análise
da vida cotidiana presente nos autos criminais alargam as possibilidades de
apreensão dos mais variados aspectos das trajetórias de escravizados e forros.
As alforrias constituíram um desses aspectos, notadamente naquele momento de
acentuadas migrações compulsórias que reduziam drasticamente as chances de
conquistar a tão sonhada carta de liberdade.
Nos
limites deste texto, autos criminais registraram fugas bem arquitetadas e
sucedidas no auge do tráfico interprovincial; frequentes negociações entre
senhores locais e aquilombados; inserção de cativos na economia local, aspecto
relevante para aferição de pecúlio à conquista de alforrias, tema recorrente na
nossa historiografia. [26] Vicente, José, Luzia e tantos outros dão mostras das
dinâmicas da vida escrava no Brasil oitocentista... e, assim como eles, muitos
escravizados vieram à luz porque “um dia se confrontaram com as realidades da
polícia e da repressão”.
NOTAS
1. FARGE,
Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2009.
2.
PEDRONI, F. Imagens apesar de tudo, parte 2. NOTA manuscrita. Disponível em:
<https://notamanuscrita.com/2021/01/26/resenha-imagens-apesar-de-tudo-parte-2/>.
Acesso em: 27 set. 2021.
3. Lembro
que a trajetória de Vicente foi documentada em dois momentos de meus estudos e
pode ser consultada em O crime na cor (2003) e Fios da Vida (2009), ambos
publicados pela Editora Annablume, São Paulo.
4. PIRES,
M. de Fátima N. Travessias a caminho – tráfico interprovincial de escravos,
Bahia e São Paulo (1850-1880). Revista África(s), v. 04, n. 08, jul./dez. 2017.
Disponível em: www.revistas.uneb.br/index.php/africas/article/view/4390. Acesso
em: 21 set. 2021. Esclareço que mantenho a ortografia original dos documentos
em meus textos. Considero que o estilo narrativo agrega informações que devam
passar pelo escrutínio crítico do pesquisador.
5. APEB.
Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 26-26v.
6. PEB.
Seção Judiciário. Processo-crime de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 10.
7. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime
de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1,
f. 17.
8. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime
de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1,
f. 19.
9. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime
de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1,
f. 20.
10. APEB. Seção Judiciário. Processo-crime
de 1885-1889. Est. 17, cx. 611, doc. 1, f. 20.
11. “Pelo
sistema da sorte, recebiam, conforme contratado, um de cada quatro, cinco ou
seis bezerros dos que ferrasse, anualmente, no gado sob seus cuidados[...].
Denominavam também de giz esse sistema que retribuía o vaqueiro com
aproximadamente 25% da produção do gado, no final do quatriênio contratado.
[...] O regime de sorte estendia-se, eventualmente, aos criatórios de equinos e
muares das mesmas fazendas de gado e mais raramente às miúças – ovinos,
caprinos e suínos – típicas de pequenos criadores, para autoconsumo”. NEVES,
Erivaldo Fagundes. Uma Comunidade Sertaneja - da sesmaria ao minifúndio (um
estudo de história regional e local). Salvador: Editora da Universidade Federal
da Bahia; Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1998. p.
251-252 (grifo nosso). Deve-se lembrar que as reses perdidas ou mortas eram
descontadas do quinhão do vaqueiro.
12.
Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (decreto n. 847, de 11 de Outubro de
1890: 312): “Art. 359. Se para realizar o roubo, ou no momento de ser
perpetrado, se commeter morte: Pena – de prisão cellular por doze a trinta
annos. Paragrapho único. Se commetter-se alguma lesão corporal das
especificadas no art. 304: pena – de prisão cellular por quatro a doze annos.”
13. APEB.
Seção Judiciário. Processo-crime de 13.06.1881. Série: Apelação crime. Est. 05,
cx. 176, doc. 13, 117 f.
14. APEB.
Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est.
05, Cx. 176, Doc. 13, fl. 15.
15. APEB.
Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est.
05, Cx. 176, Doc. 13, fl. 42.
16. APEB.
Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est.
05, Cx. 176, Doc. 13.
17. APEB.
Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est.
05, Cx. 176, Doc. 13.
18. APEB.
Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est.
05, Cx. 176, Doc. 13, f. 58-59.
19. APEB.
Processo-Crime de 13.06.1881. Sessão Judiciário. Série: Apelação crime. Est.
05, Cx. 176, Doc. 13, fl. 45-48.
20.
WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos Africanos. Vivências Ladinas. Escravos e
forros no Município de São Paulo - 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998.
21. R.
Conrad assinalou situação semelhante: “Em 1876, na província do Rio de Janeiro
[...] (os) Quilombo Grande e Quilombo do Gabriel [...] estavam localizados num
vasto pântano de mangues com uma saída para o mar, facilitando a comunicação
com o Rio de Janeiro e um mercado dessa cidade para lenha de mangue, que ali
crescia em abundância de alimentos e cachaça. Num dos quilombos, a polícia
encontrou cinco armas de fogo, duas espadas, dois machados e duas foices. No
segundo, foram encontrados um mosquete de caça carregado, uma canoa, machados,
foices, enxadas, uma rede de pesca, algumas ferramentas de carpinteiro e
sessenta e quatro embalagens de lenha, com tudo isso tendo sido confiscado”.
CONRAD, Robert E. Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil (1850-1888). 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
22. M.
Karasch afirma: “[...] o ambiente urbano do Rio facilitava a alforria. Os
escravos tinham maior probabilidade de obter a liberdade na cidade do que nas
zonas rurais”. KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Sobre escravos de ganho em Salvador, ver
MATTOSO, K. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990; e, para
São Paulo, DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século
XIX. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
23. WISSENBACH, op. cit.
24. KARASCH, op. cit.
25. DIAS, 1995.
26. A
participação de escravizados em pequenos negócios e nas mais variadas partes do
Brasil foi amplamente documentada pela historiografia da escravidão. A lei de
1871 somente “regulariza” essa situação: “Art. 4º: É permitido ao escravo a
formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e
com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O
Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e seguranças do mesmo
pecúlio”. CONRAD, op. cit. Mendonça afirma: “Ainda que fosse prática recorrente
nas relações de escravidão, foi efetivamente a lei de 28 de setembro de 1871
que reconheceu ao escravo o direito de constituir um pecúlio com o qual pudesse
indenizar seu senhor para obter a alforria. [...] Artigo 4º da Lei n.º 2.040,
de 28 de setembro de 1871 [...]” MENDONÇA, Joseli M. Nunes. A arena jurídica e
a luta pela liberdade. In: SCHWARCZ, Lilia M. e REIS, Letícia V. de Souza.
Negras imagens: ensaios sobre a Cultura e Escravidão no Brasil. São Paulo: Edusp:
Estação Ciência, 1996.
MARIA DE
FÁTIMA NOVAES PIRES. É professora Associada III da Universidade Federal da
Bahia (campus de Salvador), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, área de
Teoria da História e História da Historiografia. Escreveu O Crime na cor:
escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888) (São Paulo, Annablume,
2003); Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima
(1860-1920) (São Paulo, Annablume, 2009).