Novidade em Juazeiro
Localizada no Ceará, a biblioteca de Padre Cícero revela documentos inéditos sobre o líder religioso e reacende o debate sobre o milagre da transformação da hóstia em sangue.
Adriano Belisário
A origem é tão distinta quanto possível, mas o destino é o mesmo. Diversos fiéis saem de seus lares e vão a Juazeiro do Norte (CE) reverenciar Padre Cícero. Dos 165 anos que o Cícero Romão Batista completaria recentemente, quase 140 deles foram acompanhados de romarias à cidade no Ceará, que inicialmente eram movidas pela caridade extrema do Padre em meio à miséria e não chegavam nem perto da marca atual de dois milhões de pessoas.
Aclamado como santo pelo povo, Padre Cícero chegou a ser suspenso pela Igreja Católica e continua renegado até hoje, mas as pesquisas documentais sobre os feitos do religioso não precisam esperar o Papa.Com 600 títulos, a biblioteca de Cícero atrai atenção especial por reunir referências importantes para a formação do Padre e comentários que revelam um pouco de sua intimidade. Recentemente, a coleção de Padim Ciço ganhou destaque por conta da descoberta de dois novos livros, um caderno de anotações e um pano que supostamente teria sido usado no milagre da transubstanciação da hóstia em sangue durante uma missa na presença da beata Maria de Araújo. O acervo encontra-se no Museu São José, localizado no centro de Juazeiro do Norte, mas o restauro e a digitalização em andamento prometem expandir o acesso a tais informações. Autora de ‘Juazeiro do Padre Cícero - A Terra da Mãe de Deus’, Luitgarde Oliveira recorda de momentos mais difíceis: - Por volta de 1974, pesquisadores nacionais não podiam ter acesso aos documentos, que já tinham sido estudados anteriormente pelo historiador norte-americano Ralph Della Cava. O Padre responsável pela posse dizia que os brasileiros poderiam roubar ou danificar os arquivos. Tive que fazer uma ameaça de denúncia aos órgãos oficiais para poder ver os livros pela primeira vez.Variedade não falta à biblioteca de Padim Ciço. Em suas estantes repousavam livros sobre esoterismo, história, botânica, medicina, dicionários de línguas estrangeiras e revistas internacionais. Assinava, por exemplo, um periódico francês sobre agricultura, que talvez o tenha inspirado a instalar um sistema de policultura no oásis cearense conhecido como Vale do Cariri. O Padre também pleiteava a plantação de mandioca em larga escala na região e a proteção dos pequenos agricultores frente à expansão do cultivo de gado.Em fase de análise, seu caderno de anotações pessoais foi apresentado oficialmente ao público no último fevereiro. “Os textos se referem a coisas que ele lia. Lá, ele arranjava os conteúdos de sua oração, organizava o seu dia, rascunhava orientações espirituais, fazia evocações a Nossa Senhora, entre outras coisas. É uma página muito interessante de sua história, documenta através de anotações, como um diário”, diz Padre José Venturelli, responsável pelo Museu São José.Também surgido das profundezas da coleção de Padre Cícero, um pano que hipoteticamente foi usado para limpar o sangue da beata Maria causou repercussão na mídia. Porém, não se trata de uma novidade. Segundo Luitgarde, existem vários pedaços de “panos sagrados” no acervo de Padre Cícero e entre fiéis e admiradores. “Fui a Juazeiro pela primeira vez em 1973 e, desde então, passo lá regularmente. Já vi vários supostos panos do milagre e participei de uma Comissão da Conferência Nacional de Bispos do Brasil que reabriu todos os arquivos para analisar o caso de Padre Cícero, a pedido do Vaticano. Vimos que a história não era bem aquela do processo oficial. Mostramos que existem muitas ausências documentais. Os sangues nos panos, por exemplo, talvez não sirvam mais para testes químicos por conta do passar do tempo”, explica a antropóloga.O primo de PadimOfuscado pelo clamor em torno de Cícero, sobrevive às margens de seus feitos milagrosos seu primo José Marrocos. Assim como o parente santo, ele também nasceu na cidade de Crato (CE) e desejou a vida eclesiástica. Ambos ingressaram praticamente juntos no Seminário, mas José não precisou de polêmicas envolvendo sangue e hóstias para ser expulso da Igreja. Mesmo rejeitado, o primo de Padre Cícero continuou cristã e dedicou o resto da sua vida ao ensino pedagógico.Magia negra, divergência com superiores e recusa à comunhão estão entre os possíveis motivos da expulsão de José Marrocos do Seminário. Após literalmente revirar o lixo do Seminário, a pesquisadora Luitgarde Oliveira tem sólidos motivos para uma outra hipótese. “Achei um livro de registro escrito pelo reitor do Seminário que diz que José Marrocos foi convidado a se afastar por ser filho de um padre com uma negra escrava. O documento estava no sótão da instituição, onde estava todo material velho que o caminhão de lixo não recolheu”, afirma.Também não faltam divergências sobre a participação de José Marrocos no milagre de Juazeiro. Segundo uma tese defendida pelo historiador Padre Antônio Gomes de Araújo, a transubstanciação foi um embuste que contou com a participação do primo de Padre Cícero. A farsa teria usado um composto químico chamado fenolftaleína para simular o sangue. Novamente, Luitgarde discorda: - O indício desta fabricação era um livro de química encontrado com José Marrocos, mas a obra foi editada oito anos depois do milagre. Padre Gomes teve ainda acesso aos próprios panos do milagre e os queimou. Quando o questionei sobre isto, ficou enfurecido e me acusou de fanática.
Aclamado como santo pelo povo, Padre Cícero chegou a ser suspenso pela Igreja Católica e continua renegado até hoje, mas as pesquisas documentais sobre os feitos do religioso não precisam esperar o Papa.Com 600 títulos, a biblioteca de Cícero atrai atenção especial por reunir referências importantes para a formação do Padre e comentários que revelam um pouco de sua intimidade. Recentemente, a coleção de Padim Ciço ganhou destaque por conta da descoberta de dois novos livros, um caderno de anotações e um pano que supostamente teria sido usado no milagre da transubstanciação da hóstia em sangue durante uma missa na presença da beata Maria de Araújo. O acervo encontra-se no Museu São José, localizado no centro de Juazeiro do Norte, mas o restauro e a digitalização em andamento prometem expandir o acesso a tais informações. Autora de ‘Juazeiro do Padre Cícero - A Terra da Mãe de Deus’, Luitgarde Oliveira recorda de momentos mais difíceis: - Por volta de 1974, pesquisadores nacionais não podiam ter acesso aos documentos, que já tinham sido estudados anteriormente pelo historiador norte-americano Ralph Della Cava. O Padre responsável pela posse dizia que os brasileiros poderiam roubar ou danificar os arquivos. Tive que fazer uma ameaça de denúncia aos órgãos oficiais para poder ver os livros pela primeira vez.Variedade não falta à biblioteca de Padim Ciço. Em suas estantes repousavam livros sobre esoterismo, história, botânica, medicina, dicionários de línguas estrangeiras e revistas internacionais. Assinava, por exemplo, um periódico francês sobre agricultura, que talvez o tenha inspirado a instalar um sistema de policultura no oásis cearense conhecido como Vale do Cariri. O Padre também pleiteava a plantação de mandioca em larga escala na região e a proteção dos pequenos agricultores frente à expansão do cultivo de gado.Em fase de análise, seu caderno de anotações pessoais foi apresentado oficialmente ao público no último fevereiro. “Os textos se referem a coisas que ele lia. Lá, ele arranjava os conteúdos de sua oração, organizava o seu dia, rascunhava orientações espirituais, fazia evocações a Nossa Senhora, entre outras coisas. É uma página muito interessante de sua história, documenta através de anotações, como um diário”, diz Padre José Venturelli, responsável pelo Museu São José.Também surgido das profundezas da coleção de Padre Cícero, um pano que hipoteticamente foi usado para limpar o sangue da beata Maria causou repercussão na mídia. Porém, não se trata de uma novidade. Segundo Luitgarde, existem vários pedaços de “panos sagrados” no acervo de Padre Cícero e entre fiéis e admiradores. “Fui a Juazeiro pela primeira vez em 1973 e, desde então, passo lá regularmente. Já vi vários supostos panos do milagre e participei de uma Comissão da Conferência Nacional de Bispos do Brasil que reabriu todos os arquivos para analisar o caso de Padre Cícero, a pedido do Vaticano. Vimos que a história não era bem aquela do processo oficial. Mostramos que existem muitas ausências documentais. Os sangues nos panos, por exemplo, talvez não sirvam mais para testes químicos por conta do passar do tempo”, explica a antropóloga.O primo de PadimOfuscado pelo clamor em torno de Cícero, sobrevive às margens de seus feitos milagrosos seu primo José Marrocos. Assim como o parente santo, ele também nasceu na cidade de Crato (CE) e desejou a vida eclesiástica. Ambos ingressaram praticamente juntos no Seminário, mas José não precisou de polêmicas envolvendo sangue e hóstias para ser expulso da Igreja. Mesmo rejeitado, o primo de Padre Cícero continuou cristã e dedicou o resto da sua vida ao ensino pedagógico.Magia negra, divergência com superiores e recusa à comunhão estão entre os possíveis motivos da expulsão de José Marrocos do Seminário. Após literalmente revirar o lixo do Seminário, a pesquisadora Luitgarde Oliveira tem sólidos motivos para uma outra hipótese. “Achei um livro de registro escrito pelo reitor do Seminário que diz que José Marrocos foi convidado a se afastar por ser filho de um padre com uma negra escrava. O documento estava no sótão da instituição, onde estava todo material velho que o caminhão de lixo não recolheu”, afirma.Também não faltam divergências sobre a participação de José Marrocos no milagre de Juazeiro. Segundo uma tese defendida pelo historiador Padre Antônio Gomes de Araújo, a transubstanciação foi um embuste que contou com a participação do primo de Padre Cícero. A farsa teria usado um composto químico chamado fenolftaleína para simular o sangue. Novamente, Luitgarde discorda: - O indício desta fabricação era um livro de química encontrado com José Marrocos, mas a obra foi editada oito anos depois do milagre. Padre Gomes teve ainda acesso aos próprios panos do milagre e os queimou. Quando o questionei sobre isto, ficou enfurecido e me acusou de fanática.
À mostra no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, uma exposição da artista plástica Ana Veloso retrata a devoção ao Padre Cícero no imaginário nordestino e, ao lado das divergências historiográficas e as frescas novidades documentais, mostra que ainda há muito que se estudar e debater sobre um dos maiores ícones da cultura religiosa brasileira.