Carta aberta ao Conselho de Cultura sobre o Bairro 2 de Julho



Salvador, 13 de Julho de 2012
Ao Conselho Estadual de Cultura da Bahia
Nós, do Movimento DESOCUPA, viemos por meio desta carta sensibilizar o Conselho de Cultura do Estado da Bahia com relação a um tema que diz respeito a todos cidadãos soteropolitanos. A Prefeitura de Salvador, por meio do projeto intituladoHumanização do Bairro Santa Tereza, tenta defender a tese que é preciso humanizar o tradicional bairro 2 de Julho. Seguem alguns argumentos utilizados na defesa do projeto:
“redesenhar os seus cenários paisagísticos e físico-sociais [de Salvador] e oferecer à cidade um novo conceito de espaço urbano: o bairro humanizado.”
“dotar essa grande área de identidade e auto-estima, dando-lhe alma e corpo de um verdadeiro bairro, uma vez que os seus atuais moradores e usuários não possuem qualquer referência desse conceito”
“proporcionar um “upgrade” à imagem do bairro[1].”
Ora, é evidente que o projeto proposto pela Prefeitura causa espanto, pois não se preocupa em revelar suas verdadeiras intenções quando delimita uma poliginal de intervenção que é praticamente igual à do projeto Cluster Santa Tereza[2], gestado por duas empresas privadas e com objetivos unicamente imobiliários: a Eurofort Patrimonial e a RFM Participações[3] (projeto que vem sendo desenvolvido pelo menos desde 2007).
É impossível pensar que não se tenha aprendido nada com as consequências deste tipo de intervenção que se preocupa exclusivamente com a estrutura física de uma bairro, sem qualquer rebatimento para os moradores e usuários da região. Essa tipo de pensamento retrógrado que segrega o patrimônio material do imaterial foi o mesmo que balizou as políticas adotadas de “revitalização” do Centro Histórico de Salvador, causando os problemas sociais nefastos já conhecidos e o mínimo de preocupação por parte do Estado com as populações que ali residiam.
É preciso lembrar que a noção de patrimônio cultural, apresentada pela primeira vez na Constituição Federal de 1988, foi uma grande inovação em relação às Constituições anteriores, que utilizavam o termo patrimônio histórico e artístico. Para a Constituição: “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira[4].”
Com a Carta Magna de 88, era de se supor que ficaria superada “a concepção puramente histórica do patrimônio cultural em favor de uma concepção abrangente de todas as expressões simbólicas da memória coletiva, constitutivas da identidade de um lugar, uma região e uma comunidade[5].”
Outros autores como FONSECA (2003) também evidenciam essa ampliação da idéia de patrimônio cultural, implicando no início de um processo de desconstrução de algumas dicotomias paradigmáticas, como a de material x imaterial, cultura erudita x cultura popular, presente x passado e processo x produto[6].
Portanto, o que se espera de qualquer iniciativa por parte do poder público no intuito de “revitalizar as áreas centrais da cidade, relevantes para a memória do município”, nas palavras do próprio texto do projeto, seria que houvesse uma preocupação com a salvaguarda das populações economicamente mais vulneráveis que habitam essas regiões, no caso em questão, o Bairro 2 de Julho. Do contrário, estaríamos insistindo nessa dessasociação elitista do patrimônio, que atropela os interesses da coletividade, fere os direitos de moradia digna em prol da valorização dos imóveis. Pois sabemos que a consequência de projetos como esse são a expulsão da população tradicional para áreas distantes e desprovidas de toda a complexa e delicada teia social que foi sendo tecida ao longo de gerações.
Quem conhece o 2 de Julho reconhece nele imediatamente uma vida pulsante, seja de dia ou de noite, atrelada diretamente às pessoas que ali residem e frequentam: são rodas de capoeira, bares, restaurantes, feiras com os mais variados produtos e uma infinita gama de de serviços que asseguram a vida de milhares de pessoas. Portanto, propostas de intervenção em um bairro tão importante para a cidade são bem-vindos, desde que desenvolvidas por um processo participativo legítimo e que sejam tomadas todas as medidas cabíveis para assegurar a permanência das pessoas que atualmente usam e habitam essa região. Do contrário, estaríamos mais uma vez concordando com o tipo de política que intervêm em um lugar para que apenas cidadãos de maior poder aquisitivo possam desfrutar dessas melhorias.
É relativamente comum cair sobre o morador de baixa renda a responsabilidade pela degradação de um imóvel, quando é preciso lembrar que o abandono do Centro é programado, isto é, é uma consequência de políticas públicas urbanas, dos processos de desvalorização planejados para garantir um reinvestimento pela iniciativa privada na área, com lucros fantásticos.
Portanto, uma política de Estado voltada para uma área tão importante da cidade – reconhecida como Área de Proteção Cultural e Paisagística – não pode visar à reestruturação física sem que haja interação com aquilo que lhe dá vida e dinamicidade, ou seja, as pessoas que moram e usam o 2 de Julho. Seria um desrespeito aos cidadãos soteropolitanos recorrer a projetos enobrecedores que desconsideram a participação popular efetiva dos moradores e parecem desejar a substituição da população atual residente por uma população mais sofisticada, mais “humana”.
É importante ainda lembrar, por ser uma parceria entre Poder Público e iniciativa privada, nos preocupam não apenas os projetos desprovidos de participação apresentados pela Prefeitura, mas também os empreendimentos que, tanto pelo seu porte – que alteram radicalmente a percepção da encosta dessa região –, como pela completa ausência de diálogo e contrapartidas oferecidas aos cidadãos do 2 de Julho, agridem este bairro. O mesmo se dá com o empreendimento hoteleiro da grife Txai, que não parece oferecer nenhuma contrapartida para os moradores da região.
Assim, considerando o inegável valor cultural da área do 2 de Julho e entorno para o Estado da Bahia, solicitamos desse Conselho uma manifestação acerca do referido Projeto Humanização do Bairro Santa Tereza e dos seus impactos sobre o patrimônio cultural da Cidade e do Estado. Da mesma forma, aguardamos por um posicionamento em relação ao projeto do hotel da grife Txai, que causará impactos sociais e paisagísticos na referida região.
Cordialmente,
Movimento DESOCUPA

[1] PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR (PMS) / SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO, HABITAÇÃO E MEIO AMBIENTE (SEDHAM). Santa Tereza: humanização do bairro. apresentação da pms no xx cideu. Barcelona: 2012
[2] EUROFORT PATRIMONIAL, RFM PARTICIPAÇÕES. Santa Tereza. Disponível emhttp://www.santatereza-ba.com.br/principal.htm. Acesso em 08/07/2012;
[3] MOURAD, Laila Nazem; FIGUEIREDO, Glória Cecília. O Bairro É 2 De Julho, ou O Que Está Em Jogo No Projeto De “Humanização” (?!!!) Do Bairro Santa Tereza?Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/98753367/O-Bairro-e-2-de-Julho Acesso em 08.07/2012
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Contém as emendas constitucionais posteriores. Brasília, DF: Senado, 1988
[5] SILVA, J. A. da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001
[6] FONSECA, M. C. L. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: Memória e patrimônio.Rio de Janeiro: DP&A, 2003